segunda-feira, 30 de agosto de 2010

O triste drama das perninhas sufocadas

A comissária Keyla Santos está constrangida. Do seu assento reservado, aquele no sentido contrário do avião, próximo à saída de emergência, ela não tem escapatória aos olhares ininterruptos do meu vizinho. Ele está demais. Divorciou-se há pouco tempo e puxa conversa tentando rememorar seus tempos de flertador. Mas está enferrujado. Começou agora há pouco se esgueirando pelos assuntos mais acessíveis à ocasião: fala da barrinha de cereal, do tempo lá no destino, das rotas que ela seguirá.

Keyla busca desviar das investidas, o vizinho é velho demais para ela. Finjo que não existo, cá tentando me entreter com a revista da companhia e digitando o que pensam ser um trabalho da faculdade. Lá pelas tantas, no entanto, ouço uma e tenho que me meter na conversa. A comissária nos confidencia uma novidade: este assento listradinho de vermelho e verde, que ora empurro com a bunda, em pouco menos de um mês custará algumas dezenas de reais a mais.

Isso mesmo. Em poucos dias, para se sentar na fileira da porta de emergência será necessário desembolsar uma bufunfa extra. Peraí. Deixa eu ver se entendi, querida Keyla. O único lugar que me cabe neste maldito cubículo alado vai cutucar meu bolso ainda mais? Estes parcos centímetros de alívio para minhas pernas também entrarão na dança do capitalismo doido? Perdão, vizinho, por atrapalhar tuas cantadas infames, mas, vem cá, dona Keyla, você tá de brincadeira comigo, né?

Tou medindo aqui. A distância entre os assentos normais, os desvalorizados agora, é de aproximadamente três palmos, contados do encosto à bandejinha da frente. Embaixo, a parada é sinistra: cabe apenas um, eu disse um, palmo desta minha mão tecladora. De modo que não é preciso qualquer demonstração física ou matemática para perceber que um cidadão de um metro e noventa e três centímetros simplesmente NÃO CABE neste bagulho.

Alguém tem de fazer alguma coisa! Não é possível que não exista uma associação-de-pessoas-maiores-de-um-metro-e-oitenta-e-cinco qualquer por aí, que possa fazer uma algazarra e mobilizar as autoridades a pensar na gente. A situação é claríssima: com os nutrientes e as vitaminas dos nossos biscoitos passatempo, a população a cada geração vai crescendo. Cobrar alguém por ser alto é o fim da picada - e das minhas pernas. Não bastasse a porra da barrinha de cereal, daqui a pouco, para poder voar, tenho que fazer trinta flexões de braço, rezar seis terços e ainda pedir desculpas por existir... #Prontodesabafei, dona Keyla, pode voltar pra sua paquera aí...

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

coisa séria

não pai se for pra ser assim eu não quero não a minha sapatilha branca tudo bem você tava certo ela amoleceu de tanto usar e aqueles calos de sangue que você furou com agulha mas não doeu nunca mais me infernizaram graças a deus também o apartamento novo e ter que deixar o quintal da casa velha e o pé de jambo e argos e até a casa de bonecas que você nunca fez tudo bem também vá lá aqui tem as meninas do trezentos e dois que são legais mas o que você tá querendo dizer com casar é uma questão só de costume só porque mamãe foi lá pra vovó e não vai voltar e você diz que foi uma tal de incom incompa uns problemas com ela nãnãninãnão amar não é acostumar não senhor você tá é com intriguinha de criança e não enxerga as coisas direito pois meu filho eu vou casar com o homem mais bonito de todos e todos os dias antes de entrar na minha casa ele vai ler uma declaração de amor nova que ele escreveu enquanto chorava pensando em mim e vai me banhar de chocolate rosas e amor e vai me chamar de pretinha igual você chamava mamãe no início só que sem pedir nada depois acostumar eu acostumei com a sapatilha e o apartamento mas de amor vocês adultos não entendem é nada só brigam e não entendem que o amor é todo dia arguinhos se foi e eu lembro dele todo dia mas sei que todo dia eu brincava com ele até eu não aguentar mais as lambidas dele mas mesmo as lambidas nojentas eu gostava porque eu sei que era de verdade e ele sabe que eu deixava ser lambida porque também era de verdade amor não é brincar com a boneca só quando tá com vontade e deixar ela de lado por uns tempos amor é sorrir pai se não for assim não me deixe crescer mais me deixe aqui pra sempre pra sempre pra

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O leitor

Depois de um longo período improdutivo, faltando saco para escrever, aproveito aqui um trabalho que fiz para a faculdade para movimentar o blog - vai que assim recupero o ímpeto. Precisava fazer um perfil jornalístico sobre um anônimo. Lembrei do porteiro do prédio de um amigo. A história - verídica - é interessante.

***

Perfil: O leitor

O morador do 503 estava de saída. Desceu pelo elevador e procurou o porteiro, a quem precisava deixar um recado. Zanzou pelo térreo, nada. Foi dar com ele já do lado externo do prédio, mas antes de ser visto, parou para observar a cena curiosa que se dava porta afora. Na rua, a Nossa Senhora de Copacabana, esperançoso em ver seu chapéu ao chão encher-se de moedas, um violinista tocava o seu instrumento. Nenhuma surpresa, os artistas cariocas estão sempre perambulando por aquela zona. A novidade para o habitante do Edifício Mecejana foi perceber que quem escolhia as músicas a serem tocadas era justamente o porteiro, escorado acanhadamente na pilastra. De Tchaikovsky, o músico emplacou um Villa-Lobos arranhado, mas o seu definidor de repertório gostou. Era o seu compositor preferido.

Lá em Boqueirão, na Paraíba, possivelmente ninguém, nem mesmo os familiares do porteiro de Copacabana, iria entender bem esses gostos estranhos do rapaz. Por lá a vida é dura, a roça é que dita os acordes. Os pais de Carlos André do Nascimento, criaturas boas, decentes, ainda que desejassem um melhor futuro para os dois filhos, não puderam prescindir da ajuda deles no sustento do casebre. A quarta série não chegou a terminar e já trabalhavam em tempo integral.

Aos dezoito anos, matutando no ônibus para o Rio de Janeiro, Carlos sabia que tinha tomado a decisão certa; não queria sofrer tanto quanto os pais. Ainda assim, seguindo sul adentro a trilha feita por milhares de nordestinos, não parava de pensar em casa. Mesmo hoje, homem feito, beirando os trinta, tem dúvidas se nasceu para viver longe deles. A infância no sertão, cuja recordação lhe mareja os olhos de saudade, é resumida em liberdade e simplicidade.

Lembra da difícil chegada na cidade grande. Esbarrou na solidão, companheira de alguns anos – até que encontrasse um par com quem hoje divide a vida; mas o que mais afetou sua sensibilidade latente foi o preconceito. Olhando para trás, acha agora que foi abocanhado pela depressão, como sua mãe um dia. Na época, doía não saber falar "corretamente", ser limitado nos assuntos. Queria poder surpreender, ter conhecimento.

Carlos não sabe bem em que momento da vida despertou sua paixão pela literatura. Na verdade, já na Paraíba queria ler, mas não tinha acesso. Foi só quando foi fazer um serviço no apartamento de Seu Renato que as portas para a leitura foram abertas. Bailarino do Teatro Municipal, dono de uma bela biblioteca, o morador, percebendo a empolgação do porteiro, perguntou que livro lia no momento. Era um livro didático de biologia, que tinha conseguido por aí.

Com a biblioteca de Seu Renato inteiramente disponível, com caixotes de livros que moradores em mudança deixavam, com outro tanto tomado emprestado, uma verdadeira batalha pelo tempo perdido foi travada. Quem passasse pela portaria, fosse de manhã, tarde ou noite, sequer veria o rosto de Carlos, afundado que estava nas páginas. Houve até quem se queixasse de que estava faltando atenção ao serviço.

Lia tudo o que aparecia pela frente. De Proust a Fernando Sabino, de Voltaire a Artur daTávola. A coleção de vinte e três volumes de Eça de Queirós ele comprou por seis reais, com uns vendedores meio suspeitos que andavam pela Praça XV. Sócrates, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Jorge Amado, fala com proximidade e segurança dos grandes escritores. Mas não é bajulador; quando não entende o que dizem, não gosta.

O gosto pela literatura desembocou na música. No rádio, ligado baixinho na portaria, ouvia Rafael Rabello, Baden Powell, Vinícius de Morais, compositores de música erudita etc. Bastava fechar os olhos e se via em um palco, aqui ou fora do Brasil, dedilhando seu violão para um público extasiado. Mas o cansaço quando chegava em casa não lhe permitia exercitar os treinos que assistia nas videoaulas. Também, é sincero em assumir a falta de talento.

Segundo diz, o conhecimento que adquiriu na arte trouxe mais noção da condição humana. De fato, os moradores do Edifício Mecejana, que pouco ou nada conversam ao apressarem-se pelo hall de entrada, espantar-se-iam com as muito bem argumentadas posições do porteiro. Se não vissem ali apenas um introvertido sujeito "estranhão", embarcariam em profundas discussões sobre política ou sociologia, com ótima análise dos papéis sociais ou das precariedades da educação brasileira.

Já na despedida, usando as palavras de Renato Russo para sua fase "meio gota d'água, meio grão de areia", acha que para continuar vivo precisa simplificar, manter seu espírito jovem. E, logo depois de abrir a porta para uma moradora, recita um singelo poema que escreveu, "à la Patativa do Assaré":

No meio da multidão
E eu me sinto sozinho
Talvez por ser um pássaro
Que está distante do ninho
Eu encontro a alegria
Tocando meu violão
Indo a uma livraria
Ou vendo um filme de ação
Assim esqueço a saudade
Que o meu peito invade
Quando lembro do sertão.