A porta range depois de uma rajada de vento, e uma
expectativa tola e esquecida me percorre a espinha. Espero de cá da cama o
sutil remexido das chaves ao girar da tranca, espero os passos tão próprios,
tão lentos e ritmados, entrando casa adentro, espero o vulto que passa no
corredor a caminho de seu quarto.
Disfarço o ato falho e não me permito pensar a respeito.
Iria lembrar do “boa noite, filhão” naquela voz rouca e do cheiro impregnado
de cigarrilha de baunilha. Iria lembrar de seu passar tímido, cabeça abaixada,
matutando - seu mundo trezentos e cinquenta mil anos à frente do resto da
humanidade -, e da graça de vê-lo repetir todo dia a mesma coisa, sempre.
Como dizia, melhor não pensar muito.
Ligo a TV por instinto e vejo um William Bonner que não
recebe resposta quando se despede. Desligo.
Toca o telefone fixo de casa. É da Veja, querem falar com o
senhor Fernando, oferecer uma superpromoção para retomar a assinatura.
Malditos, à merda! Senhor Fernando está viajando, amigo, mas mandou avisar que
virou petista.
Que fazer com essas calças e sapatos, meu Deus...
Lembro que estou com fome e me levanto. Passo pela sala
parcialmente desmontada e só então me dou conta do tamanho que ela está. Sem o
armário, sofás e toda aquele aparato de pinguins, urús, lampiões, roda de
carroça, tampa de açougueiro, coruja, tamboretes, pia de médico, baús e outros,
acho que ela ganhou uns tantos metros.
Está tudo bem maior por aqui.
Agora dei conta do sumiço das plantas. Alguém tirou e
esqueceu de me avisar. Ou me avisou e eu esqueci, o que é mais provável. A bem
da verdade, melhor assim: fatalmente esqueceria de regar por semanas, e elas
morreriam, coitadas, totalmente atônitas, sem entender onde foi parar todo
aquele carinho de antigamente que recebiam.
Na cozinha, esquento no micro-ondas a comida que Ivone
deixou na geladeira e me sento à mesa, sozinho. Nada de sopa de legumes por
hoje. Nada de conversa por hoje. A porta rangeu só pra me cutucar.
Há um ano perdi aqueles vinte, trinta minutos, em que meu
ídolo me ensinava o que era a vida.