quinta-feira, 29 de julho de 2010

No dia 12 de julho, uma amiga entrava neste blog e fazia o seu único e último comentário. Tento escrever. Agrupar as milhares de memórias, espalhadas.Tento falar do arco-íris que se formou no céu quando seu corpinho subiu. Mas é demais para mim. Eu fecho os olhos e só o que vejo é a menina dançando. Dá uma risada forte, gargalhada gostosa, que mexe todo o seu rosto doce e arranca uma lágrima de tão boa. Ela acena de longe, tenta dizer algo que não entendo bem. Sem perceber que choro, a menina ainda dança.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

O adeus do ídolo

Se escrevesse que a relação foi sempre de amor e admiração, sem ressalvar certas passagens, seria injusto. Sim, confesso, em alguns momentos desdenhei de sua capacidade. Fui além: uni-me a uma corja de ranzinzas e cheguei mesmo a pedir sua cabeça, não posso esconder o fato. Era jovem e fui incapaz de perceber que ali na minha frente, ignorando os apupos ingratos, estava o meu grande ídolo no futebol.

Pois é. Eu não tive idade para ver Pelé, Zico ou Alberi. Não tive desgosto para me deleitar com Souza. Babei por Romário, Zidane. Encantei-me pelos Ronaldos, gordo e dentuço. Vi e vibrei com vários excelentes jogadores que pela minha ainda curta (ou não) existência passaram. Mas do mesmo jeito que ao homem só é permitido um time de coração, também o ídolo – o verdadeiro ídolo – não pode ter companhia. O meu chama-se Ivan Ricardo Alves de Oliveira. Ivan. O Terrível.

Essas coisas carecem de explicação. Como diria o outro: "eu não sei, só sei que foi assim". Mais rápido jogador que já vi, impetuoso, sabido, malandro – o Macunaíma potiguar. Talvez só por isso, talvez não, Ivan transformou-se naquilo que se salvava ao marasmo. Deixou de lado a chatice e a castidade dos seus pares e levou um pouco de cachaça para dentro de campo. Como profissional, era o não-atleta perfeito. Mas, ainda assim (ou por essa razão mesmo), deu-me todas as alegrias que meu coração alvinegramente sofredor poderia desejar.

Aqui não vale entrar nas suas conquistas e realizações, isso fica para as colunas oficiais. As minhas palavras morrem mesmo na mesa de bar, ainda que os dez mil pênaltis que ele forjou ao longo da carreira merecessem uma análise bem feita. Os gols de bicicleta e o seu driblezinho garrinchano para a direita, imarcável (ou não), deixo para quem viu usar os adjetivos que bem entender.

Da minha parte, já me contentaria por aí. Quando se recusou a entrar no território inimigo, ainda que fosse só para retirar um mísero abadá do Bicho-Papão, e eu estava lá, ao lado, e vi, quando Ivan negou tingir sua imagem de vermelho, a esse momento já erguera um busto na minha estima. Foi a única vez que vi o Terrível fora do gramado. Penso que de algum jeito ele sabia da minha devoção, só pode.

Ivan fez com que ontem o futebol amanhecesse ressacado, com gosto de guarda-chuva na boca. Aqui e ali, na Frasqueira, haverá quem deixe o bigode, em sua homenagem. Chegará cedo ao estádio, pedirá uma latinha de cana e ficará escorado na grade, assistindo o bczinho levar mais um gol. Vai dar segundo tempo e ele vai querer gritar, chamando alguém do banco que mude o jogo. Vai engasgar. O Ivan, matador, não vai entrar.


terça-feira, 6 de julho de 2010

Do outro lado

Enquanto escrevo, com a vista enevoada de remelas e saudades, lembro de um sonho que tive de ti. O sonho tinha cor de sonhos, portanto cinza-azulado, e cheirava à panela vazia. Mas, ainda que não saiba bem o que se sucedia no sonho, lembro, como se de fato tivesse vivido, vivido hoje mesmo, enquanto fechava meu livro e punha-me a escrever, lembro, digo, perfeitamente, e sinto frio, o olhar que me dirigias. Havia uma porta, e através dela tu lançavas-me um olhar. Ainda que fosse poeta, e não amolador de cartas jogadas ao colchão, ainda que fosse tu, não saberia, ainda, o que havia naquele olhar. Tu sentavas num sofá baixo, não sei se de roupa, e tinha a cabeça apoiada no braço. Não havia lágrima. O rosto era tão sem expressão – mesmo agora, mais uma vez, ante a lembrança, ponho-me a chorar –, o olhar tão duro, que devo ter tremido. Digo devo, porque não me lembro de mim neste sonho. No outro lado da porta, onde imagino que estava, aparentemente não havia vida. O olhar congelava os pensamentos, desdizia amores. Era tão escuro e tão frio que ser algum poderia sobreviver. Acho que me apequenei, tornei-me invisível. Vejo as cartas e não entendo. Sinto vontade de respirar, mas é tudo tão difícil. Pergunto-me, como em toda madrugada, se aquele sonho não existiu. Forço a memória e não encontro nada. Vem-me à mente uma gangorra, não sei por que. Choro e te mando aparecer ao meu lado. O que aquele olhar mudo me dizia no sonho já se dissolveu na aurora. Vai reaparecer hoje à noite, e vou lembrar-me de ti.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

À porta

Enquanto me escreves, com os olhos mareados, mares vermelhos, profundos, que não disfarçam teu abismo, enquanto escreves, digo, uma centelha de tua imagem me vem à mente. Sinto que escreves, pois é o que te resta. Não só por isso. Vai que tu me amas mesmo, que seja. Mas já se faz tempo da tua passagem por aquela porta. Naquele dia, que me proibiste de chorar, me proibiste de deixar-te e me calaste aos beijos a boca, tu transformaste-te nesta fagulha que ora me abate. Naquela porta, que transpuseste ao tempo em que me lançavas o último olhar, cabisbaixo e taciturno, naquela porta tu deixaste de ser quem era. A cada passo que davas, tu apequenava-te. Ao final, já daí de onde escreves, e já agora, agora que me vens à memória, a este momento, já sumiste. De modo que não sei se esta imagem é mesmo de ti, ou de nós dois, em algum momento em que estavas só. Percebe? Quanto as cartas que te mandei, preserve-as. Leia-as se já não mais sabes me impressionar sem teus apelos. Leia, chore, escreva. Sofra o meu silêncio, imperturbável desde o teu olhar através da porta. Poetize o teu fracasso. Já se faz tempo, pobre de ti, já faz tanto tempo. Degluta a minha indiferença. Não, não, eu não te quero mais. Não me molhe com desesperos, já disse; está tudo lá, nas cartas. Vês como era grande, não? Meu Deus, não chore. Não derrame estas lágrimas bêbadas, elas acabarão me parecendo insulto. Porra, ouça. Eu não obedeci a teus últimos mandamentos à porta. Como descrever? Tu nunca vais compreender a minha dor.