sexta-feira, 6 de maio de 2011

Cacos

Quando retornei o rosto e reparei, ela já não estava mais lá.

Quer dizer, estar ela estava, só que não mais a mulher que há dois segundos me havia fustigado o braço. Melhor: era ela, só que voltada no tempo. A mesma face que pouco antes vertia uma incontrolável fúria imediatamente acalmou. Apareceu uma menina, dois ou oito anos mais moça (como vou saber), que por pouco não reconhecia.

Os olhos, de um vermelho agressivo, descontrolado, apertaram-se num acalento de santa. Mesmíssima boca que logo atrás havia proferido os mais violentos insultos agora exibia a doçura de um sorriso apaixonado. Não que eu julgue estivesse apaixonado, mas porque o semblante próprio dizia, por mais mudo que um semblante seja. Na verdade, som algum havia naquela hora.

As suas unhas, ainda que permanecessem encravadas na minha pele, não mais machucavam; ou talvez machucassem, não sei, mas ali o destempero já fazia certo sentido. Porque tudo ali já fazia sentido: o nosso tempo, orgasmo, o nosso nós dois. Não mais era o projeto fracassado de uma tentativa de amor, era o próprio amor, transvestido de passado.

A menina, imóvel e calada, admitiu que ali morríamos. Que morríamos no passado de ternura que por certo já parecia oco. Que não tinha importância já não mais lembrarmos – ele existiu, em algum travesseiro da vida, em algum pum engraçado, ou mesmo, em uma caixa de papelão azul repleta de cartinhas, engavetada atrás dos mais desprezíveis objetos.

Antes que conseguisse me endireitar, antes mesmo que conseguisse pensar em me endireitar, a aparição esvaeceu. Dissipou-se numa poeira de cacos. Uma nuvem fina e gelada que voou para bem longe.