terça-feira, 29 de junho de 2010

O andarilho n(s)oturno

Já não distinguia bem as faces à minha frente. Devo ter abraçado inimigos, ignorado velhos parceiros, trocado horas de conversa com meros conhecidos, com quem usualmente teria dúvidas em dever cumprimentar. Até querer fumar e dar uma de brabão eu dei. Tava tão bêbado que, não tenho a mínima ideia por que, resolvi que devia andar.

Baixou-me uma tal de Síndrome do Forest Gump. Devem ser uns dez quilômetros de distância da onde eu estava até minha casa, ou mais. E havia taxis, caronas. Mas minha inebriada massa encefálica fincou os pés na maldita decisão de voltar... a pé. E lá me fui, em plena madrugada, sem medir as consequências da empreitada: não pensei no tempo que me tomaria, nas prostitutas e travestis que encontraria no caminho, no constrangimento de encontrar colegas pelos "baurus" da cidade e ser por eles taxado de doido.

Caminhava pensando em minha situação. É difícil voltar para a cidade natal, após algum tempo longe. Os dias que precedem à viagem foram de pura ansiedade. Coloquei aquela contagem regressiva no Messenger, deixei recados no Orkut dos amigos, avisando a data e hora da chegada, marquei cachaças para todos os dias da semana. Criei, enfim, uma expectativa das mais perfeitas férias da vida. Bastava fechar os olhos para imaginar nitidamente um batalhão de amigos, todos na praia, tomando cerveja após o surfe, comendo camarão, rindo de qualquer merda, só esperando à hora da balada. Lá, encontraria quem não via há anos. Eles ficariam felizes, conversaríamos sobre a vida, beberia sem me preocupar com nada; afinal, no próximo dia haveria mais. Era só fechar os olhos. Essa era a imagem.

A gente pensa que a vida caminha no nosso ritmo. A cada passo que dava na minha solitária jornada, percebia que nada era como antes. Ou melhor, tudo era como antes, mas eu é que não sou mais como antes. Sou outro. Sou, agora, um intruso em uma terra que não me deve mais explicações. O duro do asfalto me fez lembrar que minha presença já não é mais esperada. A vida das pessoas segue. Não importa se quero continuar bebendo até as oito da manhã; amanhã, elas já têm pedicure, e não mudarão por minha causa. Não importa se quero abraçar todos, conseguir tocá-los e fazê-los entender a saudade que sinto deste lugar. Nada importa. A paquera de um ainda não chegou, e só isso é importante para ele. Basta notar que estou mais magro, que é o assunto que falarão depois. Como eles não podiam perceber meus olhos de felicidade? Cadê meus amigos na praia, quando surfei só? Cadê a super festa que me prepararam para rever a sociedade, com faixas, bolas e microfone, aguardando o meu discurso? Cadê a minha velha vida que deixei parada por aqui?

Não sentia mais as pernas ou os calos na planta dos pés. Não era mais eu quem andava. Era o meu passado, que ficou perdido em algum canto da cidade.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

O ganso de Reginaldo

Tenho que contar a história de Reginaldo. O nome é fictício, apesar de, imagino, ele não fazer qualquer objeção à divulgação. Ele estuda comigo, mas só hoje conheci. Conheci, digo, bebi com ele. Antes, só cumprimentos. Passava por minha carteira, oclinhos de aro grosso, preto, mochila nas costas, cabelo comportado, mandava um "e aí" e lá ia para o seu extremo fundão da sala. Saí do bar inda agora, o boteco do China. Ele, desta vez, sentou-se à mesa em que eu estava e conosco ficou até o horário do seu metrô. Reginaldo é o cara mais louco que já conheci.

Sua trajetória renderia mais uma saga. Mas acredito que cansaria e este blog não é o local mais apropriado para contar. Escolhi, então, apenas uma de suas histórias, que ele acaba de confidenciar a seis, sete pessoas – algumas, meninas. Palestrou em alto e bom som, desprovido de qualquer acanho. Ainda que não o conheçam, acreditem em mim, é tudo verdade. Depois conto mais das suas; serão ainda três anos e meio de faculdade ao seu lado.

Reginaldo comeu um ganso.

O meu companheiro de classe também já não faz a primeira faculdade. Passou por Filosofia, por Direito, agora aventura-se no Jornalismo. Quer cobrir política. Nasceu no interior de São Paulo, zona agrária, neto do maior latifundiário local. Muito estudioso desde cedo, acabou aprendendo nos livros a origem da expressão "afogar o ganso". Segundo conta (e o Google atesta), a lenda surgiu na Antiguidade, quando os chineses, buscando atingir o Nirvana, afogavam a ave em meio à prática zoofílica.

Funcionava assim: o chinesinho estava lá, num lago, transando com o pobre ganso. Quando estava próximo ao clímax, apertava seu pescoço e submergia sua cabeça na água. Acontece que, nesse momento, pouco antes de morrer afogada, a formosa ave, involuntariamente, ativa um mecanismo biológico que comprime a sua cloaca. Em outras palavras, o afogamento do ganso travava o pinto do japa e ele experimentava um prazer sexual inigualável.

Pois, Reginaldo quis saber se a lenda procedia. Comeu um ganso no sítio do avô. Não só ganso. Transou também com árvores, com tortas e vários outros excitantes objetos. Um que apreciava bastante era a luva. Pegava na cozinha da mãe uma daquelas luvas de silicone. Preenchia-a com espaguete, de preferência com molho branco, e mandava ver. Não nos disse o que fazia depois com a mistura. Era, o que chamam, pansexual, assumido. Hoje, felicíssimo com o tratamento do seu psiquiatra, totalmente curado, diz que a loucura passou, só participa de orgias entre humanos mesmo.


terça-feira, 22 de junho de 2010

A Fábula dos Merecidos

Lá numa terra bem bem distante, não se sabe por que cargas d'água, um belo dia resolveram, cansados de tanta amolação, eleger um jumentinho de carga para novo representante do povo.

O jumentinho, que não era lá capaz de tanta ideia boa na cabeça, se gabou todo. Endireitou a postura, deu um corte moderninho na crina, fez as dez unhas de suas patas e, na falta de animais mais capacitados, acabou virando governador da patota. Disse que faria muita coisa pelos seus queridos eleitores. Mas logo nos primeiros dias, faltando-lhe a esperteza dos grandes primatas, deu uma de jumento de carga e fez distribuir aos miguxos da corja umas espigas de milho a mais. Eles se apressaram em esconder em tudo quanto era buraco da roupa que podiam: meias, cuecas e o escambau. Só que vacilou o jumentinho: esqueceu de alisar as mãos de uma bendita cobrinha. Ela ficou de mal. Fez um vídeo da fanfarrice das espigas e mostrou ao povo, que sequer tinha uns carocinhos. Pegou mal.

Noutra terra, esta aqui ainda mais distante, também não se sabe lá por qual razão, resolveram que o novo treinador da seleção de totó seria um dos sete anões. Houve uma certa repercussão, acusaram-lhe de inexperiente, mas o povo acabou engolindo. Afinal, não havia na Terra grupo de totistas mais vistosos que os daquele time, até um jumento de cargas faria um bom papel. O coitado do anão, que antes de minerador já tivera uma distinta passagem como bruto operário do meio de campo, não era muito chegado a cortesias. Na verdade, era rabugento de doer. Mas até que iniciou bem.

Para começar, deu também logo um trato no visual. Ele, que antes costumava passear vestindo uma camisetinha Bad Boy, com os olhinhos zangados entrecruzados, virou chique. Mandou a Branca de Neve coser umas roupas da moda, caprichou no gel de cabelo e pôs-se a trabalhar. Era implacável. Não deixava totista algum tentar dar uma saiota no adversário, tampouco banho. Queria peças de força, que davam um bicão de trás, rodando e tudo, e faziam gol. Coisa de macho.

Acontece que na floresta onde treinava os seus discípulos rodantes, havia também muita rainha má. Uma delas, certo dia, disfarçou-se de príncipe encantado, na pele de um jornalista. Era maligna, arquitetou um plano perfeito. Queria que toda a população se voltasse contra o treinador. Queria mostrar que ele não era guerreiro coisa nenhuma; não passava de um grosso minerador de cabelo porco-espinho. O plano era encher o saco até ele perder a paciência. Não foi difícil. O emburrado anãozinho, vendo o garboso príncipe ao telefone, a descuidar da tarefa de mimá-lo e exaltar suas vestimentas, desceu a picareta com tudo. Amaldiçoou a quinta geração do jornalista e suas palavras foram parar no Diário Encantado. O povo ficou sabendo. Não gostou da má educação do dito cujo. Pegou mal.

A fábula chegou para os Irmãos Grimm. Queriam uma moral da história boa. Nem eles conseguiram. Ficaram tão estupefatos com a falta de atitude do povo, a aceitar animais e personagens literários como seus representantes, que se recusaram a colaborar. Disseram que nós temos o que merecemos.

domingo, 20 de junho de 2010

E agora, José?

Antes de entrar cegamente nos primeiros ensaios sobre a Copa, uma homenagem ao além-mar.

Uma vez, emprestei um livro para uma amiga. Ela pedia sugestões, eu entreguei-lhe Ensaio sobre a Cegueira. Já faz um bom tempo. Éramos garotos, mas já eu dava minhas engatinhadas pelos grandes mestres. Passadas duas ou três semanas, voltou ela com o bichinho na mão. Não demonstrava lá grande empolgação. Desprevenido, com um histórico de boas recomendações nas mangas, perguntei-lhe o que achara. Ela não guardou cerimônia. Pensou um pouco, e logo disparou: "Não deu, não deu. Nunca pude imaginar que um livro pudesse deixar alguém literalmente com falta de ar".

Era a sua marca. Se é para viver a cegueira, que não seja assim sem tanto esforço. Que durem cinco, dez páginas, os parágrafos. Que não tenha pontos, vírgulas, travessões. Faça bom uso dos olhos que ora lhe permitem a leitura, mas que lhe doa a respiração, ao menos. E as mortes, os evangelhos, sejam não só preto no branco, mas também um pouco de sentir.

José Saramago, mais uma alminha na ala esquerda do céu. A língua portuguesa sentirá sua falta.

Saramago assiste com Fernando Meirelles "Ensaio sobre a Cegueira"

sábado, 19 de junho de 2010

A Saga das Figurinhas - Parte Final

É, o assunto das figurinhas passou. A esta hora, todos já exibimos na estante, com orgulho, o caderno vermelho com todos os seus seiscentos e tantos espaços devidamente preenchidos. Perdi a toada, a pauta é outra, mas a saga tem que continuar. O último episódio, a consagração. Volto correndo depois, redimir-me-ei.

O álbum encorpou-se, pois. Vêm as trocas. Os corredores dos locais fechados são sempre os melhores lugares. Se você ainda estuda, colégio ou faculdade, filé. Dois pequenos relatos para ilustrar a sublimidade da troca. Dois amigos. O primeiro, médico. O paciente teve que esperar; havia outro médico com figurinhas no consultório. O segundo, advogado. Viagem a trabalho para São Paulo. Antes de ir, o que pesquisar? Google: "melhor local para se trocar figurinhas em São Paulo". Vão do MASP. Veio.

As trocas de figurinhas são, talvez, a maior forma de socialização encontrada na terra. Pierrre Bourdieu encontraria o seu exemplo mágico para a explicação dos campos sociais, do hábitus, sei lá. Beber e fumar são ótimos em integrar desconhecidos. Mas há neles, ainda, um ranço de constrangimento. A bebida demora um pouco a pegar para que o assunto saia. O papo enquanto se fuma é um pouco enfadonho: fala-se do DJ, que tá mandando bem; fala um que ficou sem fumar seis meses, o outro responde, dizendo que voltou ainda agora; calam-se.

Trocar figurinhas é diferente. O primeiro contato é totalmente espontâneo, não precisa falar nada, só entregar as suas. Os assuntos fluem com naturalidade, sem pressa. Ao final, se você consegue uma figurinha muito procurada, aquele cara já é seu brother; já se despede com um abraço.

Algumas regras devem ser observadas: a troca é, a princípio, um contato bilateral. Foda quando você tá passando as figurinhas, uma por uma, e vem alguém por trás, esperando a vez e fica dizendo: "já tenho, já tenho, não tenho, já tenho". Deve ser evitado. Também sou contra a fixação de pesos para determinadas figurinhas. Pô, não importa se ela é prateada, se é o escudo, se é o jogador mais procurado do álbum. Se for repetida, vale o mesmo que a minha. Não já disse qual foi minha última? Um mísero goleiro da Argélia, e não o troféu da última página, que me veio aos montes.

Uma coisa que também me incomoda é a avareza. Quando o álbum de um dos trocadores já está perto do fim, é normal que o outro ache muito mais figurinhas novas do que ele. O impasse deve ser resolvido com bom senso. Não custa nada entregar quinze figurinhas e receber apenas onze. A maleabilidade é parte da interação. A consideração por aquele cara que te deixou levar todas que você achou do bolinho dele, enquanto que ele só achou umas poucas do seu, é imensa. Por fim, conselhos básicos: elástico (liga, na minha terra) no bolinho. E ordem numérica, por favor.

Eis que, milagrosamente, já faltam apenas sete, seis. Já não é mais nem necessário aquela folha rasgada de caderno com os números faltantes. Sabe-se de cor. É um momento de conflito, pois há, ao mesmo tempo, a ânsia por completar o álbum e o desejo sincero de que aquilo não acabe nunca. Afinal, haverá mesmo vida após o fechamento? Terei que esperar mais quatro anos para ser tão feliz assim de novo? A saga termina, nostalgicamente, sem que eu arranje um finalzinho emocionante para ela.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

A Saga das Figurinhas - Parte II

Não se sabe bem como a coisa começa. Na verdade, creio que não existe essa do primeiro a aparecer com o álbum. Há algo de inconsciente coletivo, poder das massas, acaso. Só sei que, do nada, já têm uns cinco amigos ostentando o bendito. E aí, acredite, é inevitável comprar. Não para se sentir parte do grupo, não para mostrar que também é capaz. Mas por inveja. Vê-se o brilho nos olhos dos colegas. É como se estivesse fora do mar, olhando todos se divertirem lá dentro, e não entrar.

E quando se entra, tem que ser duro. O álbum, leitor, é um filho. Serão muitas etapas até atingir a plenitude, até virar homem. Até lá, uma profusão de sentimentos já terá despertado em você. A batalha durará e exigirá esforço. Desistir, jamais. O colecionador tem um código de ética a seguir. Mandar email para a Panini solicitando as figurinhas restantes é a admissão do fracasso. É fraqueza, vergonha, descomprometimento; o traidor não merece consideração.

Como disse, o blog é um filho. Nasce indefeso. Não se concebe que aquilo ali um dia se completará. Para piorar, parece que você é sempre aquele com menos figurinhas coladas; os amigos sempre têm mais. Nesse momento, praticamente não há trocas. Cada participante da peleja trava uma batalha solitária. Um demorado conflito entre sua vontade de comprar um bolão, para logo terminar, e a mísera quantia diária que o seu pai lhe dá (ou que você se dá).

Colecionador que se preze não compra 6, ou 8 pacotinhos. Ou é 5 ou 10. Sem frescura. Sai da banca e vai com uma ansiedade monstra para casa. E aí entra a superstição (ou técnica) de cada um. Alguns preferem rasgar o pacotinho longitudinalmente, outros lateralmente. Uns vão conferindo e colando as figurinhas tão logo elas saem; outros fazem um montinho das repetidas e não repetidas, para só depois colar. Há também divergência na forma em que se retira o papelzinho branco de trás. Eu, particularmente, dou sempre uma amassadinha milimétrica no canto superior esquerdo, e aí puxo uma brecha que se destaca do adesivo.

Um elemento, no entanto, é praticamente unanimidade: você jamais verá alguém permitindo que outro abra o seu pacotinho. Essa demonstração de egoísmo é plenamente justificável. A abertura é um momento de inexplicável prazer. Encontrar aquele rosto desconhecido na figurinha faz com que um discreto sorriso apodere-se na face. Internamente, uma voz solta, bem na hora, um "Yes!" ou "Pega, porra!". Quando é, então, uma figurinha muito procurada, é desconhecido qualquer registro de pessoas que não gritaram.