domingo, 19 de dezembro de 2010

Encontrinho feminino pós-Blackberry e Iphone

Paty_Maya_ I'm at Pitanga Bar (Rua Ângelo Varela, 1033, Tirol, Natal, RN Brasil). http://4sq.com/dt293f

Juh_alves @Paty_maya_ Amigas reunidas é o que importa! #absolutcomredbull

MariiSouza @Paty_maya @Juh_alves ATOOOOOOOROOOON! KKK

Nahzinhaaa_ Liiiiiinnnndaaaaaaaaaas!!! http://twitpic.com/dk23ja

Juh_alves Aproveitando muuuito com minha amiga maravilhosa @Paty_maya que eu não via a um tempão

Nahzinhaaa_ @Juh_alves Fiquei com ciúmes agora kkkkk Só tava com saudade de @paty_maya é? Kkkk

Juh_alves @Nahzinhaaa_ Aiii amiiiigaa, desculpaa! Você sabe que eu te amo de paixão, lindaaa.

MariiSouza Nada melhor do que uma saidinha com as amigas depois de 3 horas na academiaa. Ufaa, quase desmaio #projetoverão

Paty_maya @MariiSouza Tou no shake todo dia friend, tem que secar pra esse verão kkkkk

MariiSouza Nossa, essa sirigueloska veio forte demais. Animar que a night prometeee kkk, né @Juh_alves?

Nahzinhaaa_ RT @HugoGloss BOA NOITE vc q tá preocupado c/ sua solteirice. Fifi, enquanto houver álcool, solteirice jamais será problema

Juh_alves kkkkkkkkk Só tenho amiga loucaaaa #socoooorro

Paty_maya RT @Juh_alves kkkkkkkkk Só tenho amiga loucaaaa #socoooorro

MariiSouza kkkkkk RT @Juh_alves kkkkkkkkk Só tenho amiga loucaaaa #socoooorro

Paty_maya E hoje, qual a boa???

Juh_alves @Paty_maya Não vou mentir que queria minha Pacha de Ibiza #tipoNOW

Nahzinhaaa_ @Paty_maya Por mim tanto faz, desde que role Banga depois #nãovoupracasaQueroafter

MariiSouza ADOROOOOOO RT @Nahzinhaaa_ Por mim tanto faz, desde que role Banga depois #nãovoupracasaQueroafter

Juh_alves Cheers! http://yfrog.com/dsi34S 

Nahzinhaaa_ Tem gente ressucitando os falecidos aquii. Enterraaaaa esse povooo omi #roedeirafeelings

Paty_maya @Nahzinhaaa_ Coisinha lindaaa aquela peruca dela ... NOT kkkkkkkkkkkkk

Juh_alves Chama o IBAMAAAAAAA que a coisa tá feiaa

MariiSouza Vamos aprender a se valorizar, meu povo! Amor próprio é essencial! #ficaadica

Paty_maya Angra no Reveillon!!! Matriculada! Quem perdeu que contee Uhhuuu

Juh_alves @Paty_maya Separa o champa que eu vou com tudooo. Matriculada [2]! BAPHOOOO!

Nahzinhaaa_ Vou sim, quero sim, posso sim, POIS NINGUÉM MANDA EM MIM. Matriculada [3]! Vai levar falta @MariiSouza.

MariiSouza @Nahzinhaaa_ Aiii amiga, nem me fale. Se joga por mim. Podia ir, mas você sabe, família é tudo né?

Juh_alves @MariiSouza @Nahzinhaaa_ @Paty_maya Família e amigas VERDADEIRAS é tudo, né? #sinceridade

Paty_maya Falou e disse sis RT Juh_alves Família e amigas VERDADEIRAS é tudo, né? #sinceridade

Nahzinhaaa_ ASOLUTinha minha querida, por que desces tão rápido? kkkkkk http://twitpic.com/aO32h5 

MariiSouza Pitanga bombandooooo com as bests @Nahzinhaaa_ @Paty_maya e @Juh_alves

Paty_maya Eu amo as minhas amigas!!!!!!

Nahzinhaaa_ RT @Paty_maya Eu amo as minhas amigas!!!!!!

MariiSouza Almocinho amanhã pra continuar a fofoca, viu amigas? Precisamos acertar os detalhes desse tal de carnaval em Salvador #adoro

Juh_alves @MariiSouza ADOROOOOOOOOOOOOOO

Paty_maya Vai ser tudo! E fds tem Safadãoooo. Alô @mauricinhoMch, vai logo reservando nossa mesa no pé do palco viuuun?

Nahzinhaaa_ @Paty_maya kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk  

Juh_alves Altoooos papos com as friends @Nahzinhaaa_ @Paty_maya e @Juh_alves Amo muitooooooooooooo!

MariiSouza @Paty_maya @Juh_alves @Nahzinhaa Adorei a noite, AMIGAS. É sempre maravilhoso estar com vocês. Obrigado por existirem #amomuito


***


Agradecimento especial a @clarabezerra_, também conhecida como minha irmã, pela ajuda na elaboração do texto. Adooooooro! rs.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

A desastrosa epopeia do cabaço de Riquelme

O assunto do cabaço de Riquelme virou pauta constante lá em casa. Chegava uma visita desprevenida, lá ia o salivante peludo em sua direção, precipitando seu imenso corpanzil sobre as pernas da desafortunada e iniciando suas obscenidades constrangedoras. Minha mãe não aguentou mais. Exigiu que arrumássemos uma cadela para que o maldito mamute pudesse descarregar sua púbere vivacidade. Após longa procura, conseguimos.

Mel chegaria no dia seguinte. Era fundamental criar uma atmosfera propícia ao romance, afinal é bem sabido que é a primeira impressão que fica. Deu-se início a mobilização para o embelezamento de Riquelme. O passo inicial, sabiamente capitulado por alguém como "descarrapatização", correu bem. Ele pareceu gostar, dando os tradicionais chutinhos quando tocávamos em alguma zona cocegarígena. Ao final, percebi um olhar meio nostálgico, como se ali estivesse se despedindo de bons e velhos amigos, que há meses compartilhavam de seu sangue.

O banho. Morando cinco bestas preguiçosas nesta residência, achamos por bem enviar o quadrúpede para cuidados profissionais. Gosto de pensar que sua higienização foi como um verdadeiro ritual de ofurô, acompanhado de suave música canina e velas com essência de tutano. Até consigo imaginar sua cara de satisfação, revirando os olhinhos enquanto escorria litros e mais litros de baba. Ele voltou todo cheio dos não me toques, trajando uma gravatinha colorida estilo pré-adolescente-"tou-na-moda".

Não é difícil supor que Riquelme estivesse já com aquilo pela cabeça. Segundo explicam os estudiosos, cada ano canino equivale a sete dos humanos. Utilizando nossa contagem, o pobre permanecia virgem quase aos trinta anos. Trinta anos! Deus sabe o que deve ter passado por sua cabeça quando Mel entrou pelo portão, lacinho cor-de-rosa na cabeça, andar de rechonchuda elegante, exalando talco e óvulos. Deve ter ficado louco.

Uma verdadeira plateia armou-se, por trás do vidro, para acompanhar o acontecimento. Após o cheira-cheira inicial, o jogo de sedução começou. Riquelme mostrou-se um autêntico gentledog, oferecendo o seu buraco na areia para o descanso da donzela. Só o tapete é que a impediu de usar, por certo querendo mostrar que também precisava de um espaço só para si. Passearam pelo jardim, rolaram pela grama, dividiram o balde d'água – a simbiose mágica, o amor. Quase.

Faltava o gran finale, a apoteose, o final fatality. Faltava a cópula e estariam todos, da minha mãe às visitas, da proprietária de Mel aos astros, estaríamos todos exultantes de felicidade, abraçando-nos em meio a estouros de champanhe e votos de boas festas. Mas não. Víamos o erguer das patas, que não revelavam mais que um peso sobre as costas da cachorra. Víamos os inócuos movimentos, sem qualquer propósito, a la comédia de besteirol americano. Víamos a face impaciente da bichinha, que, desapontada, começava a pensar que o problema era consigo. Víamos e, impotentes, não podíamos fazer nada. Riquelme não conseguiu.


Riquelme (a esq.) revira os olhos e faz carinho em Mel. Ele não conseguiu.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Escadinha do preconceito

Sinto muito, mas naquele planeta eu não piso meus jupiterianos pezinhos azuis. Por mim, tanto faz se seus habitantes esquentam a temperatura de seu chiqueiro e elevam seus ridículos mares. Para uma raça tão inferior, tão ignóbil, nada mais de se esperar além do seu auto-aniquilamento. Pois que se afoguem todos de mãos dadas, criaturas desprezíveis e que enojam nossa galáxia. Daqui do alto de um verdadeiro astro vialacteano – grande, pomposo e sublime –, verei com prazer a derrocada, mais do que na hora, desse ninho de urubus fétidos, que chamam Terra.

Ah, já ouvi, sim, falar de lá. Não é aquele país das bundas maravilhosas? Nossa, man, aquelas mulheres são quentes! Deve ser um tesão fazer sexo com elas no meio da selva, com os gorilas batendo os punhos no peito. Mas, vem cá, como é vocês conseguem se segurar naqueles cipós e se movimentar around? E outra, tem o lance dos canibais, né? Bem que podiam mandar a cambada de mexicanos para lá. Que ardam junto com todos aqueles barbudos terroristas, que querem destruir nossa grande pátria democrática. Pensando bem, acho melhor ficar aqui mesmo, sentadinho com meu Méqui, a salvo dos perigos desse resto de mundo.

É o que te digo... enquanto essa pobrada iletrada permanecer fazendo parte do nosso país, nós não temos jeito, mano! Nós que trampamos o ano inteiro, produzimos toda a riqueza da nação, temos que manter um bando de preguiçoso aproveitador? Esse povo não faz nada e ainda recebe bolsa-esmola do governo! O que é mais revoltante é que deixam o voto deles ter o mesmo valor que o meu. Não tem, mano! Eu trabalho! Eu tenho carro! Eu sou alfabetizado! Não posso ser comparado àqueles cabeças chatas do norte. Depois de invadirem nossa cidade, trazendo aquele sotaque patético, ainda querem escolher o presidente do Brasil? Pois se ouvir falarem um "ti", ao invés de "txi", vou meter lamparada na cara deles, para aprenderem a respeitar nossa elite!


***

Segundo o Aurélio, etnocentrismo é a "tendência do pensamento a considerar as categorias, normas e valores da própria sociedade ou cultura como parâmetro aplicável a todas as demais". O mundo não é Júpiter, a Terra não é os Estados Unidos, o Brasil não é o Sul-Sudeste. A diferença faz parte da vida. A diferença é a própria vida. Toda forma de preconceito é burra. Toda forma de preconceito esconde ignorância ou recalque.

domingo, 14 de novembro de 2010

.

Lembro que te disse das minhas linhas. Que nunca lesses imaginando serem meus aqueles sentimentos. Que não encarnasses na pele feminina dos meus dedos, achando seres tu a mulher perdida, a mulher amada, a mulher cuspida. Recordo que penasses para aceitar, achavas por certo que assim me esquivo das responsabilidades do meu pensar.

Pois. Escrevo agora. Para ti. Ainda que o "ti" seja justamente a personagem sobre quem te proibi de levantar tais suspeitas.

É sensato pensar que hoje tu acharás tudo isso uma imensa tolice, um grande despropósito. Daquele tempo, imagino, só te resta a lembrança de uma criatura chacoalhada pela juventude. Que suava entusiasmado, gargalhava sem critério e clamava para que todas as pessoas estivessem naquele momento olhando o mundo com seus olhos esbugalhadamente felizes. Já faz tempo.

Calei, ali, quando podia ter dito algumas coisas que mudariam o prumo de toda minha vida.

A primeira, e certamente mais perturbadora, é que eu gostava de ti. A segunda, e que tenta explicar o que agora disse, é que eu tinha medo. Se tive medo pois gostei, ou gostei por causa do medo, eu realmente não sei. O que asseguro é que naqueles poucos segundos que antecediam tuas respostas, nas nossas conversas perdidas na madrugada, eu me pegava enfeitiçado; e se houvesse possibilidade de veres minha face, assustar-te-ias com um bobo sorriso de pré-adolescente que desafiaria o mais incrédulo dos filósofos da paixão.

Percebes que digo coisas fortes. Mas, por favor, não me culpes. Eu tive medo.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Papeado de carteiro

Havia alguma coisa de nobre no seu andar de carteiro. Não que o seu bom dia fosse assim mais de respeito que o do pessoal, ou que aprumasse com maior pompa os envelopes na portinhola. Na verdade, acho que não me engraçaria tão à toa por aquele tiquinho de gente, inda mais metido naquele apapagaiado terninho amarelazul. Mas era, bom que se diga, de feitura aprazível, nem pouco, nem muito, mas tudo nos conformes, conforme se diz.

Foi quando inventou de se chegar, na sua mansidão de beira de estrada. Por certo viu que as correspondências do Dr. Juarez não vieram aquela semana, pois que perguntou baixinho: o patrão viajou pros estrangeiro? Confesso que estranhei, cabra assim dando conta da rotineira do escritório. Mas, nem bem pensei, ele mandou outra: fôsse tu, pudesse escolher as férias da vida, como é que seria? Aí foi demais. Seu Entregador, não se chateia não, mas vê que a papelada tá pesada pro dia de hoje – foi o que eu disse. E de fato tava, num sabe? Mas foi mais de acanhamento. Queira ou não, eu ainda tava com Eliélton na época. E tudo se transcorreu sem maior novidade naquela sex... sim, era sexta.

Acontece que essas coisas de sentimento a gente não sabe como é que é, né mesmo? Não foi que no caminho da lotação, no meio daquele espremido de nhaca, eu não me peguei pensando nas férias que eu sonhava ter? Foi tanto de pensamento doido, imaginando o tal do dia perfeito, viajando, num sei quê mais, que quase que perdi o ponto. Acordei meio desconfiada, com vergonha dos outros estarem ouvindo minha imaginação. Lembro que o falecido ligou depois, avisando que a moto pifara, e que não apareceria lá em casa pra nosso filme de sempre. Nem reclamei, acredita? Só sei que naquela noite, já deitada, tive um sonho esquisito. Eu tava num avião, toda posuda, indo visitar as Europa, quando reparava que a portinha da cabine tava aberta; eu esfregava os olhos pra poder enxergar direito, até que pude reparar bem: quem pilotava a nave era o bendito do carteiro.

Se eu dissesse que foi fácil, a partir daí, eu tava mentindo, mulher. Dá umas gasturas escabrosa pensar em ter que trocar o certo pelo duvidoso, a papa de aveia pelo picolé de limão. É ruim, aperta as tripas, embrulha as ideias, desperta vontade de dar grito. Subia a ruela de carreira, só queria saber de ficar só, pramóde de aguardar uma graça que arrancasse aquela ruma de confusão do meu cocuruto.

Só que o troço foi ficando mais e mais grave. Não tivesse você com pressa pra se ir, eu contava da segunda-feira, quando o danado se chegou com outra pergunta, queria saber qual tinha sido a primeira coisa que eu tinha pensado naquela manhã, pode isso? Ou da terça, quando me dizia pra contar de qual lado da pasta de dentes eu começava apertando, se do finzinho ou da boca. Não sei bem da onde ele tirava aquelas invenção. Pra mim era coisa de gente desmiolada, mas, biruta ou não, na quinta nem na sexta ele foi, e eu dei falta daqueles nossos cinco minutinhos de lero-lero.

Quando dei por mim, já não havia mais Eliélton, papa de aveia ou certeza na minha vida. Entreguei tudo pra Deus, sabe? Aquele carteirinho já era a salvação do meu dia, a única coisa que realmente importava. Vinha sempre com as histórias que via nos becos, um tal de um gato malhado que ficou preso no bueiro, um molecote que tinha as canela preta, pois que não conseguia esticar o braço pra lavar com sabão, a cantiga de um caracol que perdeu a gosma e não pôde mais andar... Eu riiiiiia, mulher. Hoje arrepito o que ele me disse no dia que o porta-cartas se rasgou debaixo de chuva: tudo é muito simples, tudo é muito simples; a gente é que cria os problema.


***

Em tempo, o texto sobre a arte de portar um guarda-chuva acabou ficando mesmo sem Parte Final. A intenção não era dividí-lo, mas o pobre do blogueiro adormeceu e não conseguiu acabar tudo no mesmo dia. Entraria agora a parte que falava propriamente do congestionamento de sombrinhas, na Paulista. Só que a ideia já não me parece mais tão interessante de se escrever. Se um dia sair, damos um jeito de consertar a bagunça.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Da incrível arte de manusear um guarda-chuva na Avenida Paulista, às seis da tarde - parte I

O leitor paulista não vai saber o propósito do texto; vai, por certo, achar sem graça, forçado. Mas sei que lá pelas nossas bandas nordestinas, ao menos um exemplar da espécie Homo Galadus vai entender direitinho o que eu estou falando.

Um belo dia, alguém importante do meu estado, no uso das atribuições a si conferidas pela sociedade, instituiu: é proibido o uso de guarda-chuva no território potiguar. Pensei muito antes de escrever a palavra "proibido"; na verdade, não sei bem se é isso. Pode ser que ele tenha dito: "é feio", "é demodèe", "vai contra os bons costumes", ou algo assim. Só sei que a coisa pegou.

Eu, particularmente, não lembro ter usado a sombrinha uma única vez em toda a minha vida, juro por Nossa Senhora. Peguei-me pensando: eu sequer saberia onde poderia comprar semelhante raridade – talvez em algum bequinho escondido nos paralelepípedos do Alecrim; uma loja secreta, sem nome na fachada, onde se precisa proferir uma senha para entrar.

Diriam: a razão é óbvia, animal; não chove em Natal. Ao que eu retrucaria: amigo, você fala dos tempos pré-aquecimento global, vai lá em maio dar uma sacada. Chove, mas não se usa guarda-chuva. Nem capa. Nem saco de lixo. Nem nada. Natalense que é natalense se molha na chuva, não sei que porra é isso. Especulo que tenha a ver com nossa saudável característica de andarmos de carro para todo canto, mesmo se o todo canto significa a academia localizada a quinhentos metros de casa – meus irmãos que o digam. Mas, ainda assim, damos nossas curtas passadas sob o céu aberto fechado ("céu aberto" + fechado).

A peculiaridade passaria em branco nos devaneios sobre minha cidadezinha, não fosse a vinda deste caipira para a cidade grande. Eis que, de uma hora para outra, me vejo debaixo desta armação de varetas e panos, lutando contra centenas de trôpegos transeuntes, igualmente armados, por um mísero espaço livre nas calçadas da avenida famosa.

(A continuar...)

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Narizinho de palhaço

Balanceando aqui no leme o prumo que o bloguinho vai tomando, nem tão lírico, nem tão cru, os dois juntos, ou nada disso, endireito por um dos assuntos que naturalmente chegam aos nossos ouvidos nestas erráticas e insensíveis segundas-feiras pós-eleições. Escapulo bravamente de toda a enxurrada televisiva – já que sobrevivo saudavelmente sem precisar saber que seiscentas e treze urnas tiveram que ser substituídas ao longo do território nacional –, mas acabo invariavelmente lendo uma ruma de patacoada que me aperreia o juízo.

O que fez Sua Excelência Deputado Francisco Everardo Oliveira Silva na vida das pessoas para que agora merecesse o posto de cidadão mais odiado do Brasil? Por que esta nova algazarra generalizada em virtude da eleição de um honesto trabalhador, ainda mais engraçadíssimo? Que escândalo é esse que levantou vozes tuiteiras que sempre se mantiveram caladas quando o assunto era política? Vou me ater a um só ponto que considero importante.

Que tem alguma coisinha errada neste nosso capenga sistema eleitoral, ah isso tem. Ai de mim adentrar nos meandros deste lamaçal todo, mas só de soslaio: a indústria do voto, que incrível, não nasceu com Tiririca. Vez por outra, aliás, me pego comparando o nosso querido palhaço cearense com uns ilustres engravatados por aí, também com passaporte carimbado para Brasília. Óbvio que nenhum do Rio Grande do Norte, estado vanguardista na decência cívica. Hmm, a comparação – não sei viu? Os quatro patinhos na lagoa ganhariam possivelmente mais uma dedada.

O meu e o teu voto não são melhores que o voto de ninguém. Temos a pedante mania de nos acharmos OS esclarecidos, OS instruídos, OS sabidões, e os outros, um bando de iletrados ignorantes, que vendem sua cidadania em troca de saco de farinha. Pois veja, eu nasci na mesmíssima casa que minha amada irmã, me alimentei dos mesmos camarõeszinhos que nos foram ofertados, idem para educação e tudo o mais. Resultado: todos os nossos votos foram diferentes, todos. Eu estou certo ou ela? Ou quem optou por escolher alguém humilde e honesto, parecido com ele, para fazer valer seus interesses (ah não, a pobrada não tem instrução pra escolher seus preferidos). O outro lá, banqueiro mascarado, porém sem peruca, é quem vai olhar pelos migrantes nordestinos, né? Pff.

Que se faça então o que minha irmãzinha sugeriu: um teste de proficiência em espírito público (para ela, a palavra era "gestão"). Senhores, não estou sendo hipócrita ou dissimulado: eu não sei quem passaria. Possivelmente ninguém. Só que não venha então crucificar o tal do Francisco Everardo. Pior foi o teu amigo, que votou naquele lá que tu conheces: o Mauricinho Machado (se não lembra, clique aqui), sabe? Será que é o Tiririca mesmo que não sabe ler? Ou o teu amigo, que não se lembra daquela denúncia que apareceu nos jornais?

Há uma total inversão de valores e há um mulambento processo eleitoral. A eleição de um palhaço é significativa para se perceber que as nossas casas políticas espalhadas pelo país transformaram-se verdadeiramente em circos armados. Só que antes de levantar da cadeira e querer empurrar o nosso protagonista para assistente do lançador de facas, vale a pena prestar atenção aos gatunos e bem vestidos malabaristas, antes que o globo fique apertado demais para podermos rodar.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Sera toujours à vos côtés (ou algo assim)

Era bom quando ainda podia ouvir tua voz ao meu ouvido. Sei que às vezes pedia para calares tua matraca de doida desvairada, mas no fundo, no fundo, eu gostava. Reclamava, acho, só para te fazer rir das minhas rabugentices sem motivo. Só que aí, ao invés da boca descontrolada, tu encarnavas uma gargalhada alta, meu Deus, muito alta. Tua gargalhada era meio estranha, era composta de gritos. O primeiro assustava quem passava perto de onde estávamos, lá na praia. Depois ia diminuindo, acalmando.

Estendíamos a canga de desenhos psicodélicos na areia, cavando buraquinhos nas quatro pontas para que o vento não levasse. Eu segurava de um lado, tu do outro, e brincávamos, antes de enfiar, de alguma coisa meio sem sentido, balançando o pano para cá e para lá. Talvez tu não tenhas reparado, mas eu deixava o lado a favor do vento para ti – para que não te enchesse de areia quando me mexesse.

Deitávamos. Ligávamos teu sonzinho, eu com o fone na orelha direita, tu na esquerda. Era bem provável que tu viesses com um samba estranho que ouviu nos bares estranhos que tu ias com tua galera estranha, mas eu me adiantava. Mandava um Los Hermanos baixinho, começando com De onde vem a calma, cujo primeiro acorde, bem de supetão, elevava nossas cabeças para algum ponto estratégica e perfeitamente situado no meião da mesosfera, de onde estaríamos a salvo de todos os urubus e aviões a jato da redondeza, e de onde poderíamos assistir, com os dedos mindinhos dos pés elevados sobre seus vizinhos, ao majestoso e único pôr-do-sol que se sucedia ali embaixo, aos pés do Morro do Careca.

Eu, me agoniando todo por não encontrar uma posição inofensiva às minhas costas, procurava um galhinho enterrado na areia e punha-me a desenhar nomes engraçados e pornografias. Pensava em começar a te contar uma história mirabolante que me ocorreu no dia anterior, mas ficava com preguiça e deixava para lá. Não havia nada que eu pudesse contar que já não soubesses. Teu monólogo plainava em uma das dimensões paralelas que eu requisitava para a hora e era tragado pelo barulho do mar.

Sei que a tarde ia embora naquele silêncio dos teus gritinhos e naquela paz que nem as formosas sequóias-gigantes do norte californiano poderiam sequer sonhar. Naquele nosso calhambeque velho, comprado a troco de gelo nos ombros, nós embarcávamos no mundo kerouacquiano da mais verdadeira amizade existente na Terra.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Ideologia de verão

A cada dois anos eles surgem. Quem eles são (eles mesmo, não a sua estirpe), na verdade, não interessa muito. O que eles fazem, pior ainda. São quase sempre invisíveis cidadãos brasileiros, que incorporam, de tempos em tempos, um novo significado à sua estimada vida. São os pseudo-entendedores-de-política, raça chata de doer.

Durante os ... (deixa eu multiplicar aqui – 365 vezes 2, descontando uns dois meses, quando efetivamente começa a campanha, hmm), durante uns setecentos dias, mais ou menos, são pessoas que pouco, ou quase nada, tocam no assunto política. Não sabem, nem de longe, o que está acontecendo lá por Brasília ou pelo seu Estado. O-d-e-i-a-m esse tipo de discussão em mesa de bar. Para ter o que falar, tiram sarro de Chávez, sem bem saber por que (é um ditador, basta), e ridicularizam o presidente alcoólatra que têm.

Mas eis que, como inflamadas abelhinhas barulhentas, elas surgem no meio social. As plataformas digitais dão o primeiro alerta de chegada. O antigo nickname "Mauricinho Machado" vira agora "Mauricinho Machado – Fulano das Tapioca 17111, Pelo povo!". As fotos do Orkut ganham tarjetas brilhantes com nome e número dos preferidos. Mas é no Twitter, maldito Twitter, que eles se superam: transformam-se nos reis dos RT's. Tudo vale: "Fulano das Tapioca visitou hoje a Creche Estamos com Fome... À vitória, meu deputado!"; "Pesquisa Encomendamostudo mostra: Tapioquinha estaria na Assembleia hoje!".

A sua ideologia política alcança à moda (não tem quem faça Maria Joaquina aparecer nos cantos com blusa de outra cor que não seja azul; vermelho, jamaaais). A facada final, a derradeira cartada, símbolo máximo da devoção irrestrita ao ídolo-candidato é linda: nossos amigos, em ato de incrível adoração, entregam a fachada valiosa de seu querido automóvel! Passeiam pela cidade em seu alegórico possante, distribuindo buzinadas fraternas e sorrisos celestiais.

Bem pensei em parar por aqui. Deixaria margens para discussões. O leitor otimista certamente iria ponderar sobre a riqueza de nossa democracia, a maravilha que é a participação popular na defesa do interesse público. Veja só que beleza, calorosos partidários indo às ruas, faixas nas cabeças, lutando a favor das causas pelas quais seus peitos juvenis pulsam sem parar. Infelizmente, não dá.

Mauricinho Machado, tive que apurar, não é outro senão o sobrinho-neto de Fulano das Tapioca. Sua construtora, de uma hora para outra, andou milagrosamente conseguindo uns servicinhos junto ao Governo, e é bom que a mamata não cesse. Maria Joaquina, coitada, tem que deixar a roupa vermelha em casa, mas é por um bom motivo. Se Jorginho, seu cunhado, ganhar as eleições, vai poder permanecer no cargo lá da secretaria, onde aparece vez por outra.

Eles seguem, inabaláveis na nova causa de suas vidas. Decoraram três números que ilustram toda a magnitude do seu idolatrado, e mais três que despencam a idoneidade do candidato adversário. Se encontram alguém que conteste o que dizem, resmungam e replicam dizendo que ele está louco, não sabe nada de política. Assim aguardam o fim da peleja, o doce sabor da vitória. Sorrirão triunfantes com o sucesso, tirarão o adesivo ridículo de seus carros e retornarão a mesquinhez de suas vidas invisíveis.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Illusio

Seu corpo todo tremeu. Os olhos pararam de ver, apenas miraram o nada; as unhas cravaram-se no peito do outro, arrancando farpas de couro suado; o grito que crescia, ritmado na gravidade nua, rasgou-se finalmente no quarto, ecoando nos segundos de secreção e paz.

Desfaleceu-se. Tombou a cabeça no braço dele, erguendo maciamente seu seio direito. Por minutos, nada disse. Acompanhando o compasso, subia e descia de acordo com o ar que ele puxava.

- Você vai?

- Tu sabes que não posso ficar.

Passou o braço e apertou o rosto contra o peito a sua frente. Ele sentiu a lágrima quente e silenciosa escorrer sobre suas costelas.

- Você promete que volta logo?

- Te jurei nunca prometer algo.

- Nem desta vez?

- Meu amor, posso sofrer com a solidão, posso esgoelar-me com a saudade, posso te perder. Prometer que amanhã te arrancarei aos beijos de tua casa e te levarei comigo ao meu lado te fará com que hoje sonhes não mais com minha presença, mas com a lembrança do tempo em que me ver era o que mais importava em tua vida. Na minha ausência, tu rememoras com paixão minhas virtudes e vícios, ao passo que em minha inútil companhia, teus anseios não perdoarão a rotina encardida. Tu sabes que volto, e sabes que voltando, te procurarei. Mas não sou digno de te afiançar minha palavra. Serei para sempre marinheiro, e serás, para sempre, vida.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

O triste drama das perninhas sufocadas

A comissária Keyla Santos está constrangida. Do seu assento reservado, aquele no sentido contrário do avião, próximo à saída de emergência, ela não tem escapatória aos olhares ininterruptos do meu vizinho. Ele está demais. Divorciou-se há pouco tempo e puxa conversa tentando rememorar seus tempos de flertador. Mas está enferrujado. Começou agora há pouco se esgueirando pelos assuntos mais acessíveis à ocasião: fala da barrinha de cereal, do tempo lá no destino, das rotas que ela seguirá.

Keyla busca desviar das investidas, o vizinho é velho demais para ela. Finjo que não existo, cá tentando me entreter com a revista da companhia e digitando o que pensam ser um trabalho da faculdade. Lá pelas tantas, no entanto, ouço uma e tenho que me meter na conversa. A comissária nos confidencia uma novidade: este assento listradinho de vermelho e verde, que ora empurro com a bunda, em pouco menos de um mês custará algumas dezenas de reais a mais.

Isso mesmo. Em poucos dias, para se sentar na fileira da porta de emergência será necessário desembolsar uma bufunfa extra. Peraí. Deixa eu ver se entendi, querida Keyla. O único lugar que me cabe neste maldito cubículo alado vai cutucar meu bolso ainda mais? Estes parcos centímetros de alívio para minhas pernas também entrarão na dança do capitalismo doido? Perdão, vizinho, por atrapalhar tuas cantadas infames, mas, vem cá, dona Keyla, você tá de brincadeira comigo, né?

Tou medindo aqui. A distância entre os assentos normais, os desvalorizados agora, é de aproximadamente três palmos, contados do encosto à bandejinha da frente. Embaixo, a parada é sinistra: cabe apenas um, eu disse um, palmo desta minha mão tecladora. De modo que não é preciso qualquer demonstração física ou matemática para perceber que um cidadão de um metro e noventa e três centímetros simplesmente NÃO CABE neste bagulho.

Alguém tem de fazer alguma coisa! Não é possível que não exista uma associação-de-pessoas-maiores-de-um-metro-e-oitenta-e-cinco qualquer por aí, que possa fazer uma algazarra e mobilizar as autoridades a pensar na gente. A situação é claríssima: com os nutrientes e as vitaminas dos nossos biscoitos passatempo, a população a cada geração vai crescendo. Cobrar alguém por ser alto é o fim da picada - e das minhas pernas. Não bastasse a porra da barrinha de cereal, daqui a pouco, para poder voar, tenho que fazer trinta flexões de braço, rezar seis terços e ainda pedir desculpas por existir... #Prontodesabafei, dona Keyla, pode voltar pra sua paquera aí...

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

coisa séria

não pai se for pra ser assim eu não quero não a minha sapatilha branca tudo bem você tava certo ela amoleceu de tanto usar e aqueles calos de sangue que você furou com agulha mas não doeu nunca mais me infernizaram graças a deus também o apartamento novo e ter que deixar o quintal da casa velha e o pé de jambo e argos e até a casa de bonecas que você nunca fez tudo bem também vá lá aqui tem as meninas do trezentos e dois que são legais mas o que você tá querendo dizer com casar é uma questão só de costume só porque mamãe foi lá pra vovó e não vai voltar e você diz que foi uma tal de incom incompa uns problemas com ela nãnãninãnão amar não é acostumar não senhor você tá é com intriguinha de criança e não enxerga as coisas direito pois meu filho eu vou casar com o homem mais bonito de todos e todos os dias antes de entrar na minha casa ele vai ler uma declaração de amor nova que ele escreveu enquanto chorava pensando em mim e vai me banhar de chocolate rosas e amor e vai me chamar de pretinha igual você chamava mamãe no início só que sem pedir nada depois acostumar eu acostumei com a sapatilha e o apartamento mas de amor vocês adultos não entendem é nada só brigam e não entendem que o amor é todo dia arguinhos se foi e eu lembro dele todo dia mas sei que todo dia eu brincava com ele até eu não aguentar mais as lambidas dele mas mesmo as lambidas nojentas eu gostava porque eu sei que era de verdade e ele sabe que eu deixava ser lambida porque também era de verdade amor não é brincar com a boneca só quando tá com vontade e deixar ela de lado por uns tempos amor é sorrir pai se não for assim não me deixe crescer mais me deixe aqui pra sempre pra sempre pra

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O leitor

Depois de um longo período improdutivo, faltando saco para escrever, aproveito aqui um trabalho que fiz para a faculdade para movimentar o blog - vai que assim recupero o ímpeto. Precisava fazer um perfil jornalístico sobre um anônimo. Lembrei do porteiro do prédio de um amigo. A história - verídica - é interessante.

***

Perfil: O leitor

O morador do 503 estava de saída. Desceu pelo elevador e procurou o porteiro, a quem precisava deixar um recado. Zanzou pelo térreo, nada. Foi dar com ele já do lado externo do prédio, mas antes de ser visto, parou para observar a cena curiosa que se dava porta afora. Na rua, a Nossa Senhora de Copacabana, esperançoso em ver seu chapéu ao chão encher-se de moedas, um violinista tocava o seu instrumento. Nenhuma surpresa, os artistas cariocas estão sempre perambulando por aquela zona. A novidade para o habitante do Edifício Mecejana foi perceber que quem escolhia as músicas a serem tocadas era justamente o porteiro, escorado acanhadamente na pilastra. De Tchaikovsky, o músico emplacou um Villa-Lobos arranhado, mas o seu definidor de repertório gostou. Era o seu compositor preferido.

Lá em Boqueirão, na Paraíba, possivelmente ninguém, nem mesmo os familiares do porteiro de Copacabana, iria entender bem esses gostos estranhos do rapaz. Por lá a vida é dura, a roça é que dita os acordes. Os pais de Carlos André do Nascimento, criaturas boas, decentes, ainda que desejassem um melhor futuro para os dois filhos, não puderam prescindir da ajuda deles no sustento do casebre. A quarta série não chegou a terminar e já trabalhavam em tempo integral.

Aos dezoito anos, matutando no ônibus para o Rio de Janeiro, Carlos sabia que tinha tomado a decisão certa; não queria sofrer tanto quanto os pais. Ainda assim, seguindo sul adentro a trilha feita por milhares de nordestinos, não parava de pensar em casa. Mesmo hoje, homem feito, beirando os trinta, tem dúvidas se nasceu para viver longe deles. A infância no sertão, cuja recordação lhe mareja os olhos de saudade, é resumida em liberdade e simplicidade.

Lembra da difícil chegada na cidade grande. Esbarrou na solidão, companheira de alguns anos – até que encontrasse um par com quem hoje divide a vida; mas o que mais afetou sua sensibilidade latente foi o preconceito. Olhando para trás, acha agora que foi abocanhado pela depressão, como sua mãe um dia. Na época, doía não saber falar "corretamente", ser limitado nos assuntos. Queria poder surpreender, ter conhecimento.

Carlos não sabe bem em que momento da vida despertou sua paixão pela literatura. Na verdade, já na Paraíba queria ler, mas não tinha acesso. Foi só quando foi fazer um serviço no apartamento de Seu Renato que as portas para a leitura foram abertas. Bailarino do Teatro Municipal, dono de uma bela biblioteca, o morador, percebendo a empolgação do porteiro, perguntou que livro lia no momento. Era um livro didático de biologia, que tinha conseguido por aí.

Com a biblioteca de Seu Renato inteiramente disponível, com caixotes de livros que moradores em mudança deixavam, com outro tanto tomado emprestado, uma verdadeira batalha pelo tempo perdido foi travada. Quem passasse pela portaria, fosse de manhã, tarde ou noite, sequer veria o rosto de Carlos, afundado que estava nas páginas. Houve até quem se queixasse de que estava faltando atenção ao serviço.

Lia tudo o que aparecia pela frente. De Proust a Fernando Sabino, de Voltaire a Artur daTávola. A coleção de vinte e três volumes de Eça de Queirós ele comprou por seis reais, com uns vendedores meio suspeitos que andavam pela Praça XV. Sócrates, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Jorge Amado, fala com proximidade e segurança dos grandes escritores. Mas não é bajulador; quando não entende o que dizem, não gosta.

O gosto pela literatura desembocou na música. No rádio, ligado baixinho na portaria, ouvia Rafael Rabello, Baden Powell, Vinícius de Morais, compositores de música erudita etc. Bastava fechar os olhos e se via em um palco, aqui ou fora do Brasil, dedilhando seu violão para um público extasiado. Mas o cansaço quando chegava em casa não lhe permitia exercitar os treinos que assistia nas videoaulas. Também, é sincero em assumir a falta de talento.

Segundo diz, o conhecimento que adquiriu na arte trouxe mais noção da condição humana. De fato, os moradores do Edifício Mecejana, que pouco ou nada conversam ao apressarem-se pelo hall de entrada, espantar-se-iam com as muito bem argumentadas posições do porteiro. Se não vissem ali apenas um introvertido sujeito "estranhão", embarcariam em profundas discussões sobre política ou sociologia, com ótima análise dos papéis sociais ou das precariedades da educação brasileira.

Já na despedida, usando as palavras de Renato Russo para sua fase "meio gota d'água, meio grão de areia", acha que para continuar vivo precisa simplificar, manter seu espírito jovem. E, logo depois de abrir a porta para uma moradora, recita um singelo poema que escreveu, "à la Patativa do Assaré":

No meio da multidão
E eu me sinto sozinho
Talvez por ser um pássaro
Que está distante do ninho
Eu encontro a alegria
Tocando meu violão
Indo a uma livraria
Ou vendo um filme de ação
Assim esqueço a saudade
Que o meu peito invade
Quando lembro do sertão.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

No dia 12 de julho, uma amiga entrava neste blog e fazia o seu único e último comentário. Tento escrever. Agrupar as milhares de memórias, espalhadas.Tento falar do arco-íris que se formou no céu quando seu corpinho subiu. Mas é demais para mim. Eu fecho os olhos e só o que vejo é a menina dançando. Dá uma risada forte, gargalhada gostosa, que mexe todo o seu rosto doce e arranca uma lágrima de tão boa. Ela acena de longe, tenta dizer algo que não entendo bem. Sem perceber que choro, a menina ainda dança.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

O adeus do ídolo

Se escrevesse que a relação foi sempre de amor e admiração, sem ressalvar certas passagens, seria injusto. Sim, confesso, em alguns momentos desdenhei de sua capacidade. Fui além: uni-me a uma corja de ranzinzas e cheguei mesmo a pedir sua cabeça, não posso esconder o fato. Era jovem e fui incapaz de perceber que ali na minha frente, ignorando os apupos ingratos, estava o meu grande ídolo no futebol.

Pois é. Eu não tive idade para ver Pelé, Zico ou Alberi. Não tive desgosto para me deleitar com Souza. Babei por Romário, Zidane. Encantei-me pelos Ronaldos, gordo e dentuço. Vi e vibrei com vários excelentes jogadores que pela minha ainda curta (ou não) existência passaram. Mas do mesmo jeito que ao homem só é permitido um time de coração, também o ídolo – o verdadeiro ídolo – não pode ter companhia. O meu chama-se Ivan Ricardo Alves de Oliveira. Ivan. O Terrível.

Essas coisas carecem de explicação. Como diria o outro: "eu não sei, só sei que foi assim". Mais rápido jogador que já vi, impetuoso, sabido, malandro – o Macunaíma potiguar. Talvez só por isso, talvez não, Ivan transformou-se naquilo que se salvava ao marasmo. Deixou de lado a chatice e a castidade dos seus pares e levou um pouco de cachaça para dentro de campo. Como profissional, era o não-atleta perfeito. Mas, ainda assim (ou por essa razão mesmo), deu-me todas as alegrias que meu coração alvinegramente sofredor poderia desejar.

Aqui não vale entrar nas suas conquistas e realizações, isso fica para as colunas oficiais. As minhas palavras morrem mesmo na mesa de bar, ainda que os dez mil pênaltis que ele forjou ao longo da carreira merecessem uma análise bem feita. Os gols de bicicleta e o seu driblezinho garrinchano para a direita, imarcável (ou não), deixo para quem viu usar os adjetivos que bem entender.

Da minha parte, já me contentaria por aí. Quando se recusou a entrar no território inimigo, ainda que fosse só para retirar um mísero abadá do Bicho-Papão, e eu estava lá, ao lado, e vi, quando Ivan negou tingir sua imagem de vermelho, a esse momento já erguera um busto na minha estima. Foi a única vez que vi o Terrível fora do gramado. Penso que de algum jeito ele sabia da minha devoção, só pode.

Ivan fez com que ontem o futebol amanhecesse ressacado, com gosto de guarda-chuva na boca. Aqui e ali, na Frasqueira, haverá quem deixe o bigode, em sua homenagem. Chegará cedo ao estádio, pedirá uma latinha de cana e ficará escorado na grade, assistindo o bczinho levar mais um gol. Vai dar segundo tempo e ele vai querer gritar, chamando alguém do banco que mude o jogo. Vai engasgar. O Ivan, matador, não vai entrar.


terça-feira, 6 de julho de 2010

Do outro lado

Enquanto escrevo, com a vista enevoada de remelas e saudades, lembro de um sonho que tive de ti. O sonho tinha cor de sonhos, portanto cinza-azulado, e cheirava à panela vazia. Mas, ainda que não saiba bem o que se sucedia no sonho, lembro, como se de fato tivesse vivido, vivido hoje mesmo, enquanto fechava meu livro e punha-me a escrever, lembro, digo, perfeitamente, e sinto frio, o olhar que me dirigias. Havia uma porta, e através dela tu lançavas-me um olhar. Ainda que fosse poeta, e não amolador de cartas jogadas ao colchão, ainda que fosse tu, não saberia, ainda, o que havia naquele olhar. Tu sentavas num sofá baixo, não sei se de roupa, e tinha a cabeça apoiada no braço. Não havia lágrima. O rosto era tão sem expressão – mesmo agora, mais uma vez, ante a lembrança, ponho-me a chorar –, o olhar tão duro, que devo ter tremido. Digo devo, porque não me lembro de mim neste sonho. No outro lado da porta, onde imagino que estava, aparentemente não havia vida. O olhar congelava os pensamentos, desdizia amores. Era tão escuro e tão frio que ser algum poderia sobreviver. Acho que me apequenei, tornei-me invisível. Vejo as cartas e não entendo. Sinto vontade de respirar, mas é tudo tão difícil. Pergunto-me, como em toda madrugada, se aquele sonho não existiu. Forço a memória e não encontro nada. Vem-me à mente uma gangorra, não sei por que. Choro e te mando aparecer ao meu lado. O que aquele olhar mudo me dizia no sonho já se dissolveu na aurora. Vai reaparecer hoje à noite, e vou lembrar-me de ti.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

À porta

Enquanto me escreves, com os olhos mareados, mares vermelhos, profundos, que não disfarçam teu abismo, enquanto escreves, digo, uma centelha de tua imagem me vem à mente. Sinto que escreves, pois é o que te resta. Não só por isso. Vai que tu me amas mesmo, que seja. Mas já se faz tempo da tua passagem por aquela porta. Naquele dia, que me proibiste de chorar, me proibiste de deixar-te e me calaste aos beijos a boca, tu transformaste-te nesta fagulha que ora me abate. Naquela porta, que transpuseste ao tempo em que me lançavas o último olhar, cabisbaixo e taciturno, naquela porta tu deixaste de ser quem era. A cada passo que davas, tu apequenava-te. Ao final, já daí de onde escreves, e já agora, agora que me vens à memória, a este momento, já sumiste. De modo que não sei se esta imagem é mesmo de ti, ou de nós dois, em algum momento em que estavas só. Percebe? Quanto as cartas que te mandei, preserve-as. Leia-as se já não mais sabes me impressionar sem teus apelos. Leia, chore, escreva. Sofra o meu silêncio, imperturbável desde o teu olhar através da porta. Poetize o teu fracasso. Já se faz tempo, pobre de ti, já faz tanto tempo. Degluta a minha indiferença. Não, não, eu não te quero mais. Não me molhe com desesperos, já disse; está tudo lá, nas cartas. Vês como era grande, não? Meu Deus, não chore. Não derrame estas lágrimas bêbadas, elas acabarão me parecendo insulto. Porra, ouça. Eu não obedeci a teus últimos mandamentos à porta. Como descrever? Tu nunca vais compreender a minha dor.

terça-feira, 29 de junho de 2010

O andarilho n(s)oturno

Já não distinguia bem as faces à minha frente. Devo ter abraçado inimigos, ignorado velhos parceiros, trocado horas de conversa com meros conhecidos, com quem usualmente teria dúvidas em dever cumprimentar. Até querer fumar e dar uma de brabão eu dei. Tava tão bêbado que, não tenho a mínima ideia por que, resolvi que devia andar.

Baixou-me uma tal de Síndrome do Forest Gump. Devem ser uns dez quilômetros de distância da onde eu estava até minha casa, ou mais. E havia taxis, caronas. Mas minha inebriada massa encefálica fincou os pés na maldita decisão de voltar... a pé. E lá me fui, em plena madrugada, sem medir as consequências da empreitada: não pensei no tempo que me tomaria, nas prostitutas e travestis que encontraria no caminho, no constrangimento de encontrar colegas pelos "baurus" da cidade e ser por eles taxado de doido.

Caminhava pensando em minha situação. É difícil voltar para a cidade natal, após algum tempo longe. Os dias que precedem à viagem foram de pura ansiedade. Coloquei aquela contagem regressiva no Messenger, deixei recados no Orkut dos amigos, avisando a data e hora da chegada, marquei cachaças para todos os dias da semana. Criei, enfim, uma expectativa das mais perfeitas férias da vida. Bastava fechar os olhos para imaginar nitidamente um batalhão de amigos, todos na praia, tomando cerveja após o surfe, comendo camarão, rindo de qualquer merda, só esperando à hora da balada. Lá, encontraria quem não via há anos. Eles ficariam felizes, conversaríamos sobre a vida, beberia sem me preocupar com nada; afinal, no próximo dia haveria mais. Era só fechar os olhos. Essa era a imagem.

A gente pensa que a vida caminha no nosso ritmo. A cada passo que dava na minha solitária jornada, percebia que nada era como antes. Ou melhor, tudo era como antes, mas eu é que não sou mais como antes. Sou outro. Sou, agora, um intruso em uma terra que não me deve mais explicações. O duro do asfalto me fez lembrar que minha presença já não é mais esperada. A vida das pessoas segue. Não importa se quero continuar bebendo até as oito da manhã; amanhã, elas já têm pedicure, e não mudarão por minha causa. Não importa se quero abraçar todos, conseguir tocá-los e fazê-los entender a saudade que sinto deste lugar. Nada importa. A paquera de um ainda não chegou, e só isso é importante para ele. Basta notar que estou mais magro, que é o assunto que falarão depois. Como eles não podiam perceber meus olhos de felicidade? Cadê meus amigos na praia, quando surfei só? Cadê a super festa que me prepararam para rever a sociedade, com faixas, bolas e microfone, aguardando o meu discurso? Cadê a minha velha vida que deixei parada por aqui?

Não sentia mais as pernas ou os calos na planta dos pés. Não era mais eu quem andava. Era o meu passado, que ficou perdido em algum canto da cidade.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

O ganso de Reginaldo

Tenho que contar a história de Reginaldo. O nome é fictício, apesar de, imagino, ele não fazer qualquer objeção à divulgação. Ele estuda comigo, mas só hoje conheci. Conheci, digo, bebi com ele. Antes, só cumprimentos. Passava por minha carteira, oclinhos de aro grosso, preto, mochila nas costas, cabelo comportado, mandava um "e aí" e lá ia para o seu extremo fundão da sala. Saí do bar inda agora, o boteco do China. Ele, desta vez, sentou-se à mesa em que eu estava e conosco ficou até o horário do seu metrô. Reginaldo é o cara mais louco que já conheci.

Sua trajetória renderia mais uma saga. Mas acredito que cansaria e este blog não é o local mais apropriado para contar. Escolhi, então, apenas uma de suas histórias, que ele acaba de confidenciar a seis, sete pessoas – algumas, meninas. Palestrou em alto e bom som, desprovido de qualquer acanho. Ainda que não o conheçam, acreditem em mim, é tudo verdade. Depois conto mais das suas; serão ainda três anos e meio de faculdade ao seu lado.

Reginaldo comeu um ganso.

O meu companheiro de classe também já não faz a primeira faculdade. Passou por Filosofia, por Direito, agora aventura-se no Jornalismo. Quer cobrir política. Nasceu no interior de São Paulo, zona agrária, neto do maior latifundiário local. Muito estudioso desde cedo, acabou aprendendo nos livros a origem da expressão "afogar o ganso". Segundo conta (e o Google atesta), a lenda surgiu na Antiguidade, quando os chineses, buscando atingir o Nirvana, afogavam a ave em meio à prática zoofílica.

Funcionava assim: o chinesinho estava lá, num lago, transando com o pobre ganso. Quando estava próximo ao clímax, apertava seu pescoço e submergia sua cabeça na água. Acontece que, nesse momento, pouco antes de morrer afogada, a formosa ave, involuntariamente, ativa um mecanismo biológico que comprime a sua cloaca. Em outras palavras, o afogamento do ganso travava o pinto do japa e ele experimentava um prazer sexual inigualável.

Pois, Reginaldo quis saber se a lenda procedia. Comeu um ganso no sítio do avô. Não só ganso. Transou também com árvores, com tortas e vários outros excitantes objetos. Um que apreciava bastante era a luva. Pegava na cozinha da mãe uma daquelas luvas de silicone. Preenchia-a com espaguete, de preferência com molho branco, e mandava ver. Não nos disse o que fazia depois com a mistura. Era, o que chamam, pansexual, assumido. Hoje, felicíssimo com o tratamento do seu psiquiatra, totalmente curado, diz que a loucura passou, só participa de orgias entre humanos mesmo.


terça-feira, 22 de junho de 2010

A Fábula dos Merecidos

Lá numa terra bem bem distante, não se sabe por que cargas d'água, um belo dia resolveram, cansados de tanta amolação, eleger um jumentinho de carga para novo representante do povo.

O jumentinho, que não era lá capaz de tanta ideia boa na cabeça, se gabou todo. Endireitou a postura, deu um corte moderninho na crina, fez as dez unhas de suas patas e, na falta de animais mais capacitados, acabou virando governador da patota. Disse que faria muita coisa pelos seus queridos eleitores. Mas logo nos primeiros dias, faltando-lhe a esperteza dos grandes primatas, deu uma de jumento de carga e fez distribuir aos miguxos da corja umas espigas de milho a mais. Eles se apressaram em esconder em tudo quanto era buraco da roupa que podiam: meias, cuecas e o escambau. Só que vacilou o jumentinho: esqueceu de alisar as mãos de uma bendita cobrinha. Ela ficou de mal. Fez um vídeo da fanfarrice das espigas e mostrou ao povo, que sequer tinha uns carocinhos. Pegou mal.

Noutra terra, esta aqui ainda mais distante, também não se sabe lá por qual razão, resolveram que o novo treinador da seleção de totó seria um dos sete anões. Houve uma certa repercussão, acusaram-lhe de inexperiente, mas o povo acabou engolindo. Afinal, não havia na Terra grupo de totistas mais vistosos que os daquele time, até um jumento de cargas faria um bom papel. O coitado do anão, que antes de minerador já tivera uma distinta passagem como bruto operário do meio de campo, não era muito chegado a cortesias. Na verdade, era rabugento de doer. Mas até que iniciou bem.

Para começar, deu também logo um trato no visual. Ele, que antes costumava passear vestindo uma camisetinha Bad Boy, com os olhinhos zangados entrecruzados, virou chique. Mandou a Branca de Neve coser umas roupas da moda, caprichou no gel de cabelo e pôs-se a trabalhar. Era implacável. Não deixava totista algum tentar dar uma saiota no adversário, tampouco banho. Queria peças de força, que davam um bicão de trás, rodando e tudo, e faziam gol. Coisa de macho.

Acontece que na floresta onde treinava os seus discípulos rodantes, havia também muita rainha má. Uma delas, certo dia, disfarçou-se de príncipe encantado, na pele de um jornalista. Era maligna, arquitetou um plano perfeito. Queria que toda a população se voltasse contra o treinador. Queria mostrar que ele não era guerreiro coisa nenhuma; não passava de um grosso minerador de cabelo porco-espinho. O plano era encher o saco até ele perder a paciência. Não foi difícil. O emburrado anãozinho, vendo o garboso príncipe ao telefone, a descuidar da tarefa de mimá-lo e exaltar suas vestimentas, desceu a picareta com tudo. Amaldiçoou a quinta geração do jornalista e suas palavras foram parar no Diário Encantado. O povo ficou sabendo. Não gostou da má educação do dito cujo. Pegou mal.

A fábula chegou para os Irmãos Grimm. Queriam uma moral da história boa. Nem eles conseguiram. Ficaram tão estupefatos com a falta de atitude do povo, a aceitar animais e personagens literários como seus representantes, que se recusaram a colaborar. Disseram que nós temos o que merecemos.

domingo, 20 de junho de 2010

E agora, José?

Antes de entrar cegamente nos primeiros ensaios sobre a Copa, uma homenagem ao além-mar.

Uma vez, emprestei um livro para uma amiga. Ela pedia sugestões, eu entreguei-lhe Ensaio sobre a Cegueira. Já faz um bom tempo. Éramos garotos, mas já eu dava minhas engatinhadas pelos grandes mestres. Passadas duas ou três semanas, voltou ela com o bichinho na mão. Não demonstrava lá grande empolgação. Desprevenido, com um histórico de boas recomendações nas mangas, perguntei-lhe o que achara. Ela não guardou cerimônia. Pensou um pouco, e logo disparou: "Não deu, não deu. Nunca pude imaginar que um livro pudesse deixar alguém literalmente com falta de ar".

Era a sua marca. Se é para viver a cegueira, que não seja assim sem tanto esforço. Que durem cinco, dez páginas, os parágrafos. Que não tenha pontos, vírgulas, travessões. Faça bom uso dos olhos que ora lhe permitem a leitura, mas que lhe doa a respiração, ao menos. E as mortes, os evangelhos, sejam não só preto no branco, mas também um pouco de sentir.

José Saramago, mais uma alminha na ala esquerda do céu. A língua portuguesa sentirá sua falta.

Saramago assiste com Fernando Meirelles "Ensaio sobre a Cegueira"

sábado, 19 de junho de 2010

A Saga das Figurinhas - Parte Final

É, o assunto das figurinhas passou. A esta hora, todos já exibimos na estante, com orgulho, o caderno vermelho com todos os seus seiscentos e tantos espaços devidamente preenchidos. Perdi a toada, a pauta é outra, mas a saga tem que continuar. O último episódio, a consagração. Volto correndo depois, redimir-me-ei.

O álbum encorpou-se, pois. Vêm as trocas. Os corredores dos locais fechados são sempre os melhores lugares. Se você ainda estuda, colégio ou faculdade, filé. Dois pequenos relatos para ilustrar a sublimidade da troca. Dois amigos. O primeiro, médico. O paciente teve que esperar; havia outro médico com figurinhas no consultório. O segundo, advogado. Viagem a trabalho para São Paulo. Antes de ir, o que pesquisar? Google: "melhor local para se trocar figurinhas em São Paulo". Vão do MASP. Veio.

As trocas de figurinhas são, talvez, a maior forma de socialização encontrada na terra. Pierrre Bourdieu encontraria o seu exemplo mágico para a explicação dos campos sociais, do hábitus, sei lá. Beber e fumar são ótimos em integrar desconhecidos. Mas há neles, ainda, um ranço de constrangimento. A bebida demora um pouco a pegar para que o assunto saia. O papo enquanto se fuma é um pouco enfadonho: fala-se do DJ, que tá mandando bem; fala um que ficou sem fumar seis meses, o outro responde, dizendo que voltou ainda agora; calam-se.

Trocar figurinhas é diferente. O primeiro contato é totalmente espontâneo, não precisa falar nada, só entregar as suas. Os assuntos fluem com naturalidade, sem pressa. Ao final, se você consegue uma figurinha muito procurada, aquele cara já é seu brother; já se despede com um abraço.

Algumas regras devem ser observadas: a troca é, a princípio, um contato bilateral. Foda quando você tá passando as figurinhas, uma por uma, e vem alguém por trás, esperando a vez e fica dizendo: "já tenho, já tenho, não tenho, já tenho". Deve ser evitado. Também sou contra a fixação de pesos para determinadas figurinhas. Pô, não importa se ela é prateada, se é o escudo, se é o jogador mais procurado do álbum. Se for repetida, vale o mesmo que a minha. Não já disse qual foi minha última? Um mísero goleiro da Argélia, e não o troféu da última página, que me veio aos montes.

Uma coisa que também me incomoda é a avareza. Quando o álbum de um dos trocadores já está perto do fim, é normal que o outro ache muito mais figurinhas novas do que ele. O impasse deve ser resolvido com bom senso. Não custa nada entregar quinze figurinhas e receber apenas onze. A maleabilidade é parte da interação. A consideração por aquele cara que te deixou levar todas que você achou do bolinho dele, enquanto que ele só achou umas poucas do seu, é imensa. Por fim, conselhos básicos: elástico (liga, na minha terra) no bolinho. E ordem numérica, por favor.

Eis que, milagrosamente, já faltam apenas sete, seis. Já não é mais nem necessário aquela folha rasgada de caderno com os números faltantes. Sabe-se de cor. É um momento de conflito, pois há, ao mesmo tempo, a ânsia por completar o álbum e o desejo sincero de que aquilo não acabe nunca. Afinal, haverá mesmo vida após o fechamento? Terei que esperar mais quatro anos para ser tão feliz assim de novo? A saga termina, nostalgicamente, sem que eu arranje um finalzinho emocionante para ela.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

A Saga das Figurinhas - Parte II

Não se sabe bem como a coisa começa. Na verdade, creio que não existe essa do primeiro a aparecer com o álbum. Há algo de inconsciente coletivo, poder das massas, acaso. Só sei que, do nada, já têm uns cinco amigos ostentando o bendito. E aí, acredite, é inevitável comprar. Não para se sentir parte do grupo, não para mostrar que também é capaz. Mas por inveja. Vê-se o brilho nos olhos dos colegas. É como se estivesse fora do mar, olhando todos se divertirem lá dentro, e não entrar.

E quando se entra, tem que ser duro. O álbum, leitor, é um filho. Serão muitas etapas até atingir a plenitude, até virar homem. Até lá, uma profusão de sentimentos já terá despertado em você. A batalha durará e exigirá esforço. Desistir, jamais. O colecionador tem um código de ética a seguir. Mandar email para a Panini solicitando as figurinhas restantes é a admissão do fracasso. É fraqueza, vergonha, descomprometimento; o traidor não merece consideração.

Como disse, o blog é um filho. Nasce indefeso. Não se concebe que aquilo ali um dia se completará. Para piorar, parece que você é sempre aquele com menos figurinhas coladas; os amigos sempre têm mais. Nesse momento, praticamente não há trocas. Cada participante da peleja trava uma batalha solitária. Um demorado conflito entre sua vontade de comprar um bolão, para logo terminar, e a mísera quantia diária que o seu pai lhe dá (ou que você se dá).

Colecionador que se preze não compra 6, ou 8 pacotinhos. Ou é 5 ou 10. Sem frescura. Sai da banca e vai com uma ansiedade monstra para casa. E aí entra a superstição (ou técnica) de cada um. Alguns preferem rasgar o pacotinho longitudinalmente, outros lateralmente. Uns vão conferindo e colando as figurinhas tão logo elas saem; outros fazem um montinho das repetidas e não repetidas, para só depois colar. Há também divergência na forma em que se retira o papelzinho branco de trás. Eu, particularmente, dou sempre uma amassadinha milimétrica no canto superior esquerdo, e aí puxo uma brecha que se destaca do adesivo.

Um elemento, no entanto, é praticamente unanimidade: você jamais verá alguém permitindo que outro abra o seu pacotinho. Essa demonstração de egoísmo é plenamente justificável. A abertura é um momento de inexplicável prazer. Encontrar aquele rosto desconhecido na figurinha faz com que um discreto sorriso apodere-se na face. Internamente, uma voz solta, bem na hora, um "Yes!" ou "Pega, porra!". Quando é, então, uma figurinha muito procurada, é desconhecido qualquer registro de pessoas que não gritaram.

terça-feira, 25 de maio de 2010

A Saga das Figurinhas - Parte I

Pode até ter um efeito prejudicial pro perfil, afastando gente séria disto aqui. Mas se quero honrar minha Exposição de Motivos, e escrever o que passa na cabeça, devo começar pelo assunto das figurinhas.

Não tem como. Se tem alguma coisa que me tira a concentração, os cabelos e o dinheiro é a busca pelo maldito 222. Falta uma, pessoas. Umazinha. O safado do goleiro da Argélia. O baitola do Faouzi Chaouchi, olha só que nome ele tem. Um metro e noventa e dois, sagitariano com 26 anos, nascido em Bordj Ménaiel. Quantas vezes já abri meu álbum na página 26, olhando com tristeza o espaço em branco que me desgosta minha própria existência. Quanto já sofri para chegar até aqui. Tantas idas esperançosas à banca de jornal, tanta expectativa ao abrir o pacotinho. Tantas vezes que cheguei cedo à faculdade, sentei-me no corredor e pus-me à arte do escambo.

Achei que jamais viveria essa emoção novamente. Achei que colecionar figurinhas fazia parte de um longínquo passado, perdido em minhas lembranças. A ansiedade da espera por meu pai, a entrar pela porta e me entregar cinco pacotinhos, não mais. Antes, mostrar-lhe, orgulhoso, a lição de casa feita, condição indispensável para o presente. A profunda amargura quando vinha sem nada às mãos, quando não restava opção senão contar, mais uma vez, quantas figurinhas faltavam para completar...

sexta-feira, 7 de maio de 2010

DA EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS

Não posso antever se isso vai acontecer, provavelmente não, mas preciso me precaver. Vai que alguém lê. Vai que vou para o BBB 47 e viro famoso. Vai que crio uma frase de efeito, estilo "Ronaldo" e vão atrás de minha vida pregressa. Vão querer saber tudo, invadirão meu Orkut, conversarão com os brothers lá da quebrada, acharão alguma paquerinha que comprove que sou violento. Olha só que sorte para a Sônia Abrão: descobrem um blog com meu nome! Aí tou fudido.

Melhor garantir o leite dos meninos. O blog, que se conservará blog e não blogue, não tem motivo algum, independente do título que dei acima – é que meu pé jurídico ainda caleja. Não preciso dele (do blog, não do pé), ele não precisa de mim: eis a maravilha da Internet. Ele existe, de fato, ocupa os pixels de tua magnífica tela. Mas pode não existir, pode sumir, um mero delete, um indolor adeus – sem lágrimas, simplesmente alguns kilobytes a menos no matrix cibernético.

Escrevo apenas porque gosto. E é bom que eu escreva, sabe? Primeiro, agradece o portfólio. A nova faculdade me mostrou o que isso significa; os requisitos para estágios me explicaram, bem direitinho, que essas coisas são importantes pr'um jornalista. Segunda e talvez última justificativa é que o blog aprisiona meus textos. Ele me obriga a expulsá-los da minha mente (onde normalmente preferem hibernar) e me faz o favor de não perdê-los. Aqui eles recebem proteção, podendo até salvar uns eucaliptozinhos.

O "pr'um" me faz lembrar algo. Seguinte, isto é sério. É importantíssimo que fique bem claro: eu não estou NEM AÍ para os erros gramaticais! Eles acontecerão, acredite. Haverá vários (ou haverão vários?) – se bem que essa aí eu sabia... Mas outros não saberei. Se te incomodam essas falhas, se te dói a vista uma próclise mal usada, uma concordância incorreta, um hífen descabido, por favor, procure outra distração para tua vida; mas aqui quem escolhe o que escrever sou eu! Felizmente, até 2012 eu tenho a desculpa de o acordo ortográfico ainda não estar totalmente em vigor, desculpa essa que, desde já, uso, ainda que meu erro seja de utilização da vírgula.

Quanto ao conteúdo, vamos lá. Você sabe para que serve uma profissão? Apenas para engessar a sua capacidade! Por que o lixeiro apenas limpa a rua, se ele tem cérebro e pode pensar? Por que o matemático só estuda matemática? Por que o médico não pode saber um pouco de música? E o músico como se constrói uma casa? Bem, não vou assustar o "leitor" com esses papos já no primeiro post. Mas isso vale para que eu diga algo: o blog não é de política, de esportes ou de artes. O blog é de Gabriel. E sendo de Gabriel, ele vai expor o que passa na cabecinha de Gabriel. E Gabriel, vejam só, não pensa só em política, em fofocas ou em putaria. O que for assunto merecedor de umas palavrinhas, forte suficiente para vencer à preguiça, aparecerá aqui. Essa é a maravilha do jornalismo, ele é centrípeto (bonito isso), abre o objeto de trabalho.

Acabam-se as introduções. Se te interessou apertar o "página 1", legal, aqui você entendeu o nada a que este blog se propõe. Vamos ver até onde essa bodega vai chegar...