quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Papeado de carteiro

Havia alguma coisa de nobre no seu andar de carteiro. Não que o seu bom dia fosse assim mais de respeito que o do pessoal, ou que aprumasse com maior pompa os envelopes na portinhola. Na verdade, acho que não me engraçaria tão à toa por aquele tiquinho de gente, inda mais metido naquele apapagaiado terninho amarelazul. Mas era, bom que se diga, de feitura aprazível, nem pouco, nem muito, mas tudo nos conformes, conforme se diz.

Foi quando inventou de se chegar, na sua mansidão de beira de estrada. Por certo viu que as correspondências do Dr. Juarez não vieram aquela semana, pois que perguntou baixinho: o patrão viajou pros estrangeiro? Confesso que estranhei, cabra assim dando conta da rotineira do escritório. Mas, nem bem pensei, ele mandou outra: fôsse tu, pudesse escolher as férias da vida, como é que seria? Aí foi demais. Seu Entregador, não se chateia não, mas vê que a papelada tá pesada pro dia de hoje – foi o que eu disse. E de fato tava, num sabe? Mas foi mais de acanhamento. Queira ou não, eu ainda tava com Eliélton na época. E tudo se transcorreu sem maior novidade naquela sex... sim, era sexta.

Acontece que essas coisas de sentimento a gente não sabe como é que é, né mesmo? Não foi que no caminho da lotação, no meio daquele espremido de nhaca, eu não me peguei pensando nas férias que eu sonhava ter? Foi tanto de pensamento doido, imaginando o tal do dia perfeito, viajando, num sei quê mais, que quase que perdi o ponto. Acordei meio desconfiada, com vergonha dos outros estarem ouvindo minha imaginação. Lembro que o falecido ligou depois, avisando que a moto pifara, e que não apareceria lá em casa pra nosso filme de sempre. Nem reclamei, acredita? Só sei que naquela noite, já deitada, tive um sonho esquisito. Eu tava num avião, toda posuda, indo visitar as Europa, quando reparava que a portinha da cabine tava aberta; eu esfregava os olhos pra poder enxergar direito, até que pude reparar bem: quem pilotava a nave era o bendito do carteiro.

Se eu dissesse que foi fácil, a partir daí, eu tava mentindo, mulher. Dá umas gasturas escabrosa pensar em ter que trocar o certo pelo duvidoso, a papa de aveia pelo picolé de limão. É ruim, aperta as tripas, embrulha as ideias, desperta vontade de dar grito. Subia a ruela de carreira, só queria saber de ficar só, pramóde de aguardar uma graça que arrancasse aquela ruma de confusão do meu cocuruto.

Só que o troço foi ficando mais e mais grave. Não tivesse você com pressa pra se ir, eu contava da segunda-feira, quando o danado se chegou com outra pergunta, queria saber qual tinha sido a primeira coisa que eu tinha pensado naquela manhã, pode isso? Ou da terça, quando me dizia pra contar de qual lado da pasta de dentes eu começava apertando, se do finzinho ou da boca. Não sei bem da onde ele tirava aquelas invenção. Pra mim era coisa de gente desmiolada, mas, biruta ou não, na quinta nem na sexta ele foi, e eu dei falta daqueles nossos cinco minutinhos de lero-lero.

Quando dei por mim, já não havia mais Eliélton, papa de aveia ou certeza na minha vida. Entreguei tudo pra Deus, sabe? Aquele carteirinho já era a salvação do meu dia, a única coisa que realmente importava. Vinha sempre com as histórias que via nos becos, um tal de um gato malhado que ficou preso no bueiro, um molecote que tinha as canela preta, pois que não conseguia esticar o braço pra lavar com sabão, a cantiga de um caracol que perdeu a gosma e não pôde mais andar... Eu riiiiiia, mulher. Hoje arrepito o que ele me disse no dia que o porta-cartas se rasgou debaixo de chuva: tudo é muito simples, tudo é muito simples; a gente é que cria os problema.


***

Em tempo, o texto sobre a arte de portar um guarda-chuva acabou ficando mesmo sem Parte Final. A intenção não era dividí-lo, mas o pobre do blogueiro adormeceu e não conseguiu acabar tudo no mesmo dia. Entraria agora a parte que falava propriamente do congestionamento de sombrinhas, na Paulista. Só que a ideia já não me parece mais tão interessante de se escrever. Se um dia sair, damos um jeito de consertar a bagunça.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Da incrível arte de manusear um guarda-chuva na Avenida Paulista, às seis da tarde - parte I

O leitor paulista não vai saber o propósito do texto; vai, por certo, achar sem graça, forçado. Mas sei que lá pelas nossas bandas nordestinas, ao menos um exemplar da espécie Homo Galadus vai entender direitinho o que eu estou falando.

Um belo dia, alguém importante do meu estado, no uso das atribuições a si conferidas pela sociedade, instituiu: é proibido o uso de guarda-chuva no território potiguar. Pensei muito antes de escrever a palavra "proibido"; na verdade, não sei bem se é isso. Pode ser que ele tenha dito: "é feio", "é demodèe", "vai contra os bons costumes", ou algo assim. Só sei que a coisa pegou.

Eu, particularmente, não lembro ter usado a sombrinha uma única vez em toda a minha vida, juro por Nossa Senhora. Peguei-me pensando: eu sequer saberia onde poderia comprar semelhante raridade – talvez em algum bequinho escondido nos paralelepípedos do Alecrim; uma loja secreta, sem nome na fachada, onde se precisa proferir uma senha para entrar.

Diriam: a razão é óbvia, animal; não chove em Natal. Ao que eu retrucaria: amigo, você fala dos tempos pré-aquecimento global, vai lá em maio dar uma sacada. Chove, mas não se usa guarda-chuva. Nem capa. Nem saco de lixo. Nem nada. Natalense que é natalense se molha na chuva, não sei que porra é isso. Especulo que tenha a ver com nossa saudável característica de andarmos de carro para todo canto, mesmo se o todo canto significa a academia localizada a quinhentos metros de casa – meus irmãos que o digam. Mas, ainda assim, damos nossas curtas passadas sob o céu aberto fechado ("céu aberto" + fechado).

A peculiaridade passaria em branco nos devaneios sobre minha cidadezinha, não fosse a vinda deste caipira para a cidade grande. Eis que, de uma hora para outra, me vejo debaixo desta armação de varetas e panos, lutando contra centenas de trôpegos transeuntes, igualmente armados, por um mísero espaço livre nas calçadas da avenida famosa.

(A continuar...)

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Narizinho de palhaço

Balanceando aqui no leme o prumo que o bloguinho vai tomando, nem tão lírico, nem tão cru, os dois juntos, ou nada disso, endireito por um dos assuntos que naturalmente chegam aos nossos ouvidos nestas erráticas e insensíveis segundas-feiras pós-eleições. Escapulo bravamente de toda a enxurrada televisiva – já que sobrevivo saudavelmente sem precisar saber que seiscentas e treze urnas tiveram que ser substituídas ao longo do território nacional –, mas acabo invariavelmente lendo uma ruma de patacoada que me aperreia o juízo.

O que fez Sua Excelência Deputado Francisco Everardo Oliveira Silva na vida das pessoas para que agora merecesse o posto de cidadão mais odiado do Brasil? Por que esta nova algazarra generalizada em virtude da eleição de um honesto trabalhador, ainda mais engraçadíssimo? Que escândalo é esse que levantou vozes tuiteiras que sempre se mantiveram caladas quando o assunto era política? Vou me ater a um só ponto que considero importante.

Que tem alguma coisinha errada neste nosso capenga sistema eleitoral, ah isso tem. Ai de mim adentrar nos meandros deste lamaçal todo, mas só de soslaio: a indústria do voto, que incrível, não nasceu com Tiririca. Vez por outra, aliás, me pego comparando o nosso querido palhaço cearense com uns ilustres engravatados por aí, também com passaporte carimbado para Brasília. Óbvio que nenhum do Rio Grande do Norte, estado vanguardista na decência cívica. Hmm, a comparação – não sei viu? Os quatro patinhos na lagoa ganhariam possivelmente mais uma dedada.

O meu e o teu voto não são melhores que o voto de ninguém. Temos a pedante mania de nos acharmos OS esclarecidos, OS instruídos, OS sabidões, e os outros, um bando de iletrados ignorantes, que vendem sua cidadania em troca de saco de farinha. Pois veja, eu nasci na mesmíssima casa que minha amada irmã, me alimentei dos mesmos camarõeszinhos que nos foram ofertados, idem para educação e tudo o mais. Resultado: todos os nossos votos foram diferentes, todos. Eu estou certo ou ela? Ou quem optou por escolher alguém humilde e honesto, parecido com ele, para fazer valer seus interesses (ah não, a pobrada não tem instrução pra escolher seus preferidos). O outro lá, banqueiro mascarado, porém sem peruca, é quem vai olhar pelos migrantes nordestinos, né? Pff.

Que se faça então o que minha irmãzinha sugeriu: um teste de proficiência em espírito público (para ela, a palavra era "gestão"). Senhores, não estou sendo hipócrita ou dissimulado: eu não sei quem passaria. Possivelmente ninguém. Só que não venha então crucificar o tal do Francisco Everardo. Pior foi o teu amigo, que votou naquele lá que tu conheces: o Mauricinho Machado (se não lembra, clique aqui), sabe? Será que é o Tiririca mesmo que não sabe ler? Ou o teu amigo, que não se lembra daquela denúncia que apareceu nos jornais?

Há uma total inversão de valores e há um mulambento processo eleitoral. A eleição de um palhaço é significativa para se perceber que as nossas casas políticas espalhadas pelo país transformaram-se verdadeiramente em circos armados. Só que antes de levantar da cadeira e querer empurrar o nosso protagonista para assistente do lançador de facas, vale a pena prestar atenção aos gatunos e bem vestidos malabaristas, antes que o globo fique apertado demais para podermos rodar.