segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Sera toujours à vos côtés (ou algo assim)

Era bom quando ainda podia ouvir tua voz ao meu ouvido. Sei que às vezes pedia para calares tua matraca de doida desvairada, mas no fundo, no fundo, eu gostava. Reclamava, acho, só para te fazer rir das minhas rabugentices sem motivo. Só que aí, ao invés da boca descontrolada, tu encarnavas uma gargalhada alta, meu Deus, muito alta. Tua gargalhada era meio estranha, era composta de gritos. O primeiro assustava quem passava perto de onde estávamos, lá na praia. Depois ia diminuindo, acalmando.

Estendíamos a canga de desenhos psicodélicos na areia, cavando buraquinhos nas quatro pontas para que o vento não levasse. Eu segurava de um lado, tu do outro, e brincávamos, antes de enfiar, de alguma coisa meio sem sentido, balançando o pano para cá e para lá. Talvez tu não tenhas reparado, mas eu deixava o lado a favor do vento para ti – para que não te enchesse de areia quando me mexesse.

Deitávamos. Ligávamos teu sonzinho, eu com o fone na orelha direita, tu na esquerda. Era bem provável que tu viesses com um samba estranho que ouviu nos bares estranhos que tu ias com tua galera estranha, mas eu me adiantava. Mandava um Los Hermanos baixinho, começando com De onde vem a calma, cujo primeiro acorde, bem de supetão, elevava nossas cabeças para algum ponto estratégica e perfeitamente situado no meião da mesosfera, de onde estaríamos a salvo de todos os urubus e aviões a jato da redondeza, e de onde poderíamos assistir, com os dedos mindinhos dos pés elevados sobre seus vizinhos, ao majestoso e único pôr-do-sol que se sucedia ali embaixo, aos pés do Morro do Careca.

Eu, me agoniando todo por não encontrar uma posição inofensiva às minhas costas, procurava um galhinho enterrado na areia e punha-me a desenhar nomes engraçados e pornografias. Pensava em começar a te contar uma história mirabolante que me ocorreu no dia anterior, mas ficava com preguiça e deixava para lá. Não havia nada que eu pudesse contar que já não soubesses. Teu monólogo plainava em uma das dimensões paralelas que eu requisitava para a hora e era tragado pelo barulho do mar.

Sei que a tarde ia embora naquele silêncio dos teus gritinhos e naquela paz que nem as formosas sequóias-gigantes do norte californiano poderiam sequer sonhar. Naquele nosso calhambeque velho, comprado a troco de gelo nos ombros, nós embarcávamos no mundo kerouacquiano da mais verdadeira amizade existente na Terra.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Ideologia de verão

A cada dois anos eles surgem. Quem eles são (eles mesmo, não a sua estirpe), na verdade, não interessa muito. O que eles fazem, pior ainda. São quase sempre invisíveis cidadãos brasileiros, que incorporam, de tempos em tempos, um novo significado à sua estimada vida. São os pseudo-entendedores-de-política, raça chata de doer.

Durante os ... (deixa eu multiplicar aqui – 365 vezes 2, descontando uns dois meses, quando efetivamente começa a campanha, hmm), durante uns setecentos dias, mais ou menos, são pessoas que pouco, ou quase nada, tocam no assunto política. Não sabem, nem de longe, o que está acontecendo lá por Brasília ou pelo seu Estado. O-d-e-i-a-m esse tipo de discussão em mesa de bar. Para ter o que falar, tiram sarro de Chávez, sem bem saber por que (é um ditador, basta), e ridicularizam o presidente alcoólatra que têm.

Mas eis que, como inflamadas abelhinhas barulhentas, elas surgem no meio social. As plataformas digitais dão o primeiro alerta de chegada. O antigo nickname "Mauricinho Machado" vira agora "Mauricinho Machado – Fulano das Tapioca 17111, Pelo povo!". As fotos do Orkut ganham tarjetas brilhantes com nome e número dos preferidos. Mas é no Twitter, maldito Twitter, que eles se superam: transformam-se nos reis dos RT's. Tudo vale: "Fulano das Tapioca visitou hoje a Creche Estamos com Fome... À vitória, meu deputado!"; "Pesquisa Encomendamostudo mostra: Tapioquinha estaria na Assembleia hoje!".

A sua ideologia política alcança à moda (não tem quem faça Maria Joaquina aparecer nos cantos com blusa de outra cor que não seja azul; vermelho, jamaaais). A facada final, a derradeira cartada, símbolo máximo da devoção irrestrita ao ídolo-candidato é linda: nossos amigos, em ato de incrível adoração, entregam a fachada valiosa de seu querido automóvel! Passeiam pela cidade em seu alegórico possante, distribuindo buzinadas fraternas e sorrisos celestiais.

Bem pensei em parar por aqui. Deixaria margens para discussões. O leitor otimista certamente iria ponderar sobre a riqueza de nossa democracia, a maravilha que é a participação popular na defesa do interesse público. Veja só que beleza, calorosos partidários indo às ruas, faixas nas cabeças, lutando a favor das causas pelas quais seus peitos juvenis pulsam sem parar. Infelizmente, não dá.

Mauricinho Machado, tive que apurar, não é outro senão o sobrinho-neto de Fulano das Tapioca. Sua construtora, de uma hora para outra, andou milagrosamente conseguindo uns servicinhos junto ao Governo, e é bom que a mamata não cesse. Maria Joaquina, coitada, tem que deixar a roupa vermelha em casa, mas é por um bom motivo. Se Jorginho, seu cunhado, ganhar as eleições, vai poder permanecer no cargo lá da secretaria, onde aparece vez por outra.

Eles seguem, inabaláveis na nova causa de suas vidas. Decoraram três números que ilustram toda a magnitude do seu idolatrado, e mais três que despencam a idoneidade do candidato adversário. Se encontram alguém que conteste o que dizem, resmungam e replicam dizendo que ele está louco, não sabe nada de política. Assim aguardam o fim da peleja, o doce sabor da vitória. Sorrirão triunfantes com o sucesso, tirarão o adesivo ridículo de seus carros e retornarão a mesquinhez de suas vidas invisíveis.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Illusio

Seu corpo todo tremeu. Os olhos pararam de ver, apenas miraram o nada; as unhas cravaram-se no peito do outro, arrancando farpas de couro suado; o grito que crescia, ritmado na gravidade nua, rasgou-se finalmente no quarto, ecoando nos segundos de secreção e paz.

Desfaleceu-se. Tombou a cabeça no braço dele, erguendo maciamente seu seio direito. Por minutos, nada disse. Acompanhando o compasso, subia e descia de acordo com o ar que ele puxava.

- Você vai?

- Tu sabes que não posso ficar.

Passou o braço e apertou o rosto contra o peito a sua frente. Ele sentiu a lágrima quente e silenciosa escorrer sobre suas costelas.

- Você promete que volta logo?

- Te jurei nunca prometer algo.

- Nem desta vez?

- Meu amor, posso sofrer com a solidão, posso esgoelar-me com a saudade, posso te perder. Prometer que amanhã te arrancarei aos beijos de tua casa e te levarei comigo ao meu lado te fará com que hoje sonhes não mais com minha presença, mas com a lembrança do tempo em que me ver era o que mais importava em tua vida. Na minha ausência, tu rememoras com paixão minhas virtudes e vícios, ao passo que em minha inútil companhia, teus anseios não perdoarão a rotina encardida. Tu sabes que volto, e sabes que voltando, te procurarei. Mas não sou digno de te afiançar minha palavra. Serei para sempre marinheiro, e serás, para sempre, vida.