sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Um ano

A porta range depois de uma rajada de vento, e uma expectativa tola e esquecida me percorre a espinha. Espero de cá da cama o sutil remexido das chaves ao girar da tranca, espero os passos tão próprios, tão lentos e ritmados, entrando casa adentro, espero o vulto que passa no corredor a caminho de seu quarto.

Disfarço o ato falho e não me permito pensar a respeito. Iria lembrar do “boa noite, filhão” naquela voz rouca e do cheiro impregnado de cigarrilha de baunilha. Iria lembrar de seu passar tímido, cabeça abaixada, matutando - seu mundo trezentos e cinquenta mil anos à frente do resto da humanidade -, e da graça de vê-lo repetir todo dia a mesma coisa, sempre.

Como dizia, melhor não pensar muito.  

Ligo a TV por instinto e vejo um William Bonner que não recebe resposta quando se despede. Desligo.

Toca o telefone fixo de casa. É da Veja, querem falar com o senhor Fernando, oferecer uma superpromoção para retomar a assinatura. Malditos, à merda! Senhor Fernando está viajando, amigo, mas mandou avisar que virou petista.

Que fazer com essas calças e sapatos, meu Deus...  

Lembro que estou com fome e me levanto. Passo pela sala parcialmente desmontada e só então me dou conta do tamanho que ela está. Sem o armário, sofás e toda aquele aparato de pinguins, urús, lampiões, roda de carroça, tampa de açougueiro, coruja, tamboretes, pia de médico, baús e outros, acho que ela ganhou uns tantos metros.

Está tudo bem maior por aqui.

Agora dei conta do sumiço das plantas. Alguém tirou e esqueceu de me avisar. Ou me avisou e eu esqueci, o que é mais provável. A bem da verdade, melhor assim: fatalmente esqueceria de regar por semanas, e elas morreriam, coitadas, totalmente atônitas, sem entender onde foi parar todo aquele carinho de antigamente que recebiam.

Na cozinha, esquento no micro-ondas a comida que Ivone deixou na geladeira e me sento à mesa, sozinho. Nada de sopa de legumes por hoje. Nada de conversa por hoje. A porta rangeu só pra me cutucar.


Há um ano perdi aqueles vinte, trinta minutos, em que meu ídolo me ensinava o que era a vida.

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